Folia do Tritão

Fevereiro aconteceu com sua batida intensa, cheiro de álcool e cores espalhadas pelas ruas do Brasil. Era o desabrochar de uma nação após a hibernação forçada pela pandemia. Em meio aos foliões procurava os amigos. Combinar não dispersar durante a folia foi em vão. Os atrativos carnais da festa aparentemente venceram o bom-senso e um a um o grupo de cinco pessoas foi se diluindo. A cidade rescendia a magia e promessas de sexo fácil. Aos trancos Selena conseguiu se livrar  da maré que seguia o trio e caminhar até a beira do mar. Sempre preferiu a Paraty dos barcos, da feira literária e da introspecção junto à natureza, sem Rei Momo.  Retirou os sapatos sentindo o atrito da pele com a areia molhada. Sentou na areia, exausta. Fechou os olhos por alguns minutos e ao abri-los percebeu uma presença – Os cabelos longos, olhos claros e um corpo musculoso bronzeado. Ele parecia ter uns 35 anos, apesar do cabelo já ligeiramente prateado. Um belo homem,  vestido como um rei Tritão. Os olhares se misturaram pouco antes das bocas se encontrarem. Sentia o corpo incendiar em um arrepio que percorreu cada pelo e retesou cada músculo. Não houve convite, apenas concordância muda: Ele caminhou em direção ao mar e ela o seguiu, hipnotizada e devota, consciente de que aquele encontro mudaria tudo.  Os corpos se misturaram ali, banhados pela espuma. Os beijos salgados de mar, a pele ardente de sal e paixão. Perdeu-se no tempo, incapaz de perceber quantas horas se passaram ou vezes vezes atingiu o ápice ao colidir com aquele corpo rígido.  Nunca havia alcançado tal frenesi.

Acordou no hospital, desidratada e queimada pelo sol. O Carnaval acabava naquele sábado que deveria ser o primeiro dia de diversão. Sentia-se culpada por estragar os planos mas não logrou convencer seus amigos a deixarem-na sozinha para curtir as festas tão aguardadas. Nos dias seguintes procuraram o homem que foi ao carnaval vestido de Tritão e partiu levando ocoração de Selena, deixando apenas com um cordão de pérolas obscenamente valioso decorado por um pingente delicado: Uma concha incrustada em prata.

    Algumas artesãs souberam sua história e foram visita-la  levando flores, quitutes típicos e uma história sobre o Rei dos Mares que, em busca de uma mulher capaz de lhe dar um herdeiro,  anualmente seduz uma jovem. Nove luas depois uma criança nasce – Se nascer menina, torna-se sereia e vai morar com ele no reino das águas e a mãe, enlouquecida de saudades da cria e do Rei, cedo ou tarde salta ao mar e morre. A mulher que lhe der um menino está destinada a receber seu coração e governar os mares a seu lado para todo o sempre. 

  Na Quarta Feira de cinzas, pegaram a estrada. Os amigos animados, planejando o próximo feriado não percebiam Selena calada, olhando pela janela. Ela ainda sentia o cheiro do mar agarrado na pele, não era apenas a brisa, era algo mais intenso, como se o oceano estivesse dentro dela, invadindo seu coração, sua alma e seu útero. Instintivamente, levou as duas mãos ao ventre e 

Olhando para a linha do horizonte, pôde de vê-lo acenar para ela, cercado por muitas meninas de cabelos prateados que nadavam, saltando entre as ondas.

Abriu o vidro do carro e acenou com um lenço branco, não conseguindo impedir que o vento o roubasse fazendo-o flutuar em direção ao mar. Naquele instante teve a certeza que em um ano morreria ou se tornaria rainha. Os olhos transbordaram o mar que revolto batia contra o seu peito a impedindo de respirar. Era o início do derradeiro adeus. 


Esse post faz parte do BEDA: Blog Everyday August (Pois é, estou tentando participar novamente. Será que dessa vez passo dos dez primeiros dias? Só me seguindo para saber…rs)

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A dança sombria

No carnaval Heitor se sentia vivo. Ele sempre gostou de dançar. Quando menino vestia sua roupa mais colorida e passava horas imitando coreografias da moda ou rodopiando – Seu mundo era música e a sensação dos pés descalços tocando o chão. Infelizmente o tempo o obrigou a guardar seus sonhos dentro de uma caixa enterrada no fundo da alma – Faculdade, trabalho e rotina o fizeram entender que ele não faria parte daqueles poucos bem-aventurados que fazem da paixão sua profissão. Como havia sobrevivido sem carnaval durante os tristes anos da pandemia de COVID-19  era um mistério que agora pouco importava: O carnaval finalmente havia voltado.

               Aconteceu durante o Bloco das Ba-Bahianas sem Taboleiro, tradicionalíssimo em São Vicente. Heitor dançava, deixando a música libertá-lo de suas amarras: Vergonha, insegurança e timidez iam sendo pisadas pelos pés ágeis e velozes. No mar de foliões, um olhar chamou a atenção: Aquele rapaz negro retinto de olhos côr de âmbar, vestido com um short de linho e um colar de sementes vermelhas não parava de encará-lo. Um flerte logo correspondido pelo seu corpo. 

– Quem é você? 

– Sou um gênio. Posso realizar teu desejo mais profundo. 

  Meio bêbado, Heitor apenas sussurrou: Tudo o que eu quero é dançar para sempre. Até morrer. E beijou o belo desconhecido. Os lábios quentes tinham sabor de tâmaras frescas e mel.

          Heitor repentinamente se viu num palco – A folia havia sumido. O samba, o trio elétrico e aquele homem lindo haviam desaparecido. Ele dançava abraçado a uma bailarina enquanto uma música tocava e a cortina abria e fechava, Não parava nunca. Ele não via a plateia, apenas um vidro e dois olhos que espiavam de tempos em tempos. Ele não conseguia parar de dançar nem soltar a bailarina que lhe parecia um manequim: Muda e gelada. Ouvia conversas de pessoas incomodadas com o som contínuo, e tudo ao redor parecia enorme. Ele dançou por dias, semanas e meses, sem jamais descansar. Começou a sentir dores, mas não podia parar de dançar. O cenário ao redor do palco mudava frequentemente: Primeiro parecia estar num enorme quarto de criança, depois numa sala, num velho galpão e por último, sentiu a terra tremer sob seus pés quando o palco inteiro caiu em um lugar ermo, que parecia um beco. O vidro rachou, mas ele não conseguia soltar a bailarina e fugir. 

  As pessoas que passavam pelo beco ouviam a música e se perguntavam de onde ela vinha, mas não sabiam da triste história de Heitor. Alguns ouviam gritos e gemidos vindos da caixa, mas achavam que eram apenas ilusões sonoras.

  Anos se passaram e Heitor se transformou em uma criatura assustadora, sem vida e sem alma, mas ainda dançando dentro da caixa de música. Sua pele estava enrugada e seca, seus olhos estavam vidrados e sem expressão. As pessoas que o viam dançando ficavam paralisadas de medo e corriam dali o mais rápido possível. 

  Certa noite um homem que vivia em situação de rua assentou-se naquele beco. Entre seus delírios via um monstruoso homem dançando na caixinha de música que jazia em uma pilha de entulhos. Irritado pelo som contínuo, ele arremessou a caixinha com força para o meio da rua. Envelhecida pelo tempo, a madeira se partiu. João então retomou seu tamanho normal, o corpo minúsculo da bailarina em sua mão. Ele olhou os destroços ao seu lado e finalmente entendeu: Estivera preso numa caixinha de música. Dançou até o último de seus dias, como havia pedido. Tarde demais percebeu que desejos podem ser perigosos e gênios nem sempre são amáveis. Rodopiou uma última vez, involuntariamente, seu corpo exigia movimento contínuo. Carros passaram raspando por sua figura esquálida. Um policial tentou pará-lo, mas ele não conseguia deixar de dançar. Nas calçadas quem passava o via com pena ou desprezo: Mais um perdido na vida, delirante, sem eira nem beira. Aqueles  olhares machucavam Heitor como facas. Sentia sede, fome e dores. Dançando chegou na avenida principal da cidade. Foi atingido por um caminhão que passava correndo pela contra mão. Morreu ao som distante de uma música que tocava em algum lugar.

As bodas de Alice (Dark Fantasy inspirada em Alice no País das Maravilhas)

As vozes femininas ao redor começaram a deixar Alice zonza. Sentia os olhos arderem devido ao cheiro dos cosméticos aplicados no cabelo e segurava a vontade de xingar a cabeleireira pelos puxões da escova. O corpo estava dolorido pela depilação feita minutos antes. E ainda faltavam a maquiagem e o vestido – Bendito vestido branco, rendado, pesado. E se alguma das daminhas tropeçasse no véu? E se o cachorro saísse correndo com a cestinha onde estavam as alianças? Se soubesse que o casamento seria sinônimo de tanta dor de cabeça e cansaço, teria fugido com o noivo para um lugar no meio do nada e nunca mais voltaria. Neste ponto dos pensamentos, as lágrimas começaram a cair sem controle – em parte pela ardência, em parte pela ansiedade. Foi preciso interromper o serviço para que ela caminhasse ao ar livre até as lágrimas cessarem.

         Sentou-se em um banco de tábuas entre duas árvores e lembrou a infância. Brincara tantas vezes junto à irmã em quintais verdes, espaçosos. Um coelho cinza  com olhos vermelhos surgiu junto a seus pés. O animal tinha ares de pressa, mordiscava a barra da saia de Alice e corria um pouco, voltando em seguida. Alice levantou e seguiu o orelhudo amigo.Vivian não havia contado sobre aquele novo integrante da família! O coelho ia se afastando da casa em direção a um buraco no canto do muro. O quintal parecia ter crescido repentinamente. Alice seguiu o coelho até a entrada da toca e sentiu o chão desaparecer sob seus pés – Estava sendo sugada para dentro da terra. 

Acordou em um chão de terra batida dentro do que parecia ser uma caverna. Não havia como subir de volta pelo túnel que parecia estar longe, muito longe. O cabelo estava todo desfeito, os braços ralados e o tornozelo inchado – Teria sorte se não tivesse fraturado nada..Havia velas no canto oposto ao local onde havia caído. Mancando, Alice se aproximou do local iluminado e percebeu que as velas na verdade formavam um caminho mais para o fundo da caverna. Impossibilitada de retornar, seguiu. Quando criança, adorava a história de sua xará que descobria um mundo fantástico após seguir um coelho branco porém ao arrepiar-se de medo, pressentia que não teria a mesma sorte da personagem. 

Conforme avançava, Alice percebia que a escuridão se aprofundava. As velas, que no início do caminho traziam a chama parada, agora iam se tornando bruxuleantes, indicando a possível presença de corrente de ar. E se há corrente de ar, há possivelmente uma saída. A esperança logo se desfez: Um rio corria nas entranhas da Terra. Atravessá-lo levaria Alice direto a um paredão. A única opção seria seguir o curso do rio por dentro d’água em direção a outra caverna que parecia ainda mais escura. O cheiro fétido e a aparência oleosa-esverdeada pareciam gritar um recado: Não toque. 

O estômago roncava. Quanto tempo havia passado desde o momento da queda? Pensou em retornar, mas percebeu que as velas estavam quase apagadas. Deu alguns passos para trás e se deitou no meio do caminho, enrolando-se em posição fetal. Estava com frio e com medo. Chorou e adormeceu esperando que alguém viesse colocar novas velas e a resgatasse. 

Acordou com um pesadelo onde Arthur a abraçava pedindo para que abrisse os olhos. O ar faltava. Sentiu um aperto no peito – O que o noivo pensaria de seu desaparecimento no dia do casamento? Olhou ao redor e percebeu que ainda estava na caverna e, para sua surpresa, as velas haviam sido trocadas e encontravam-se novamente acesas. Quem quer que houvesse feito a manutenção daquele caminho havia deliberadamente abandonado-a ali, adormecida. Caminhou de volta e percebeu que sempre retornava ao mesmo lugar: A beira do rio. A passagem por onde caíra havia se fechado. Morreria faminta e sedenta nas entranhas do mundo. Olhou novamente ao redor buscando alternativas para sobreviver mais tempo ou abreviar o sofrimento. Percebeu pela primeira vez que cogumelos vermelhos cresciam nas pedras próximas ao rio. Colheu uma porção deles – Esperava que o sabor não fosse de todo ruim. 

Acordou. Os cogumelos não eram venenosos. Percebeu um movimento diferente nas águas e se surpreendeu ao ver o coelho cinza remando um barco até a margem do rio. O animal usava uma capa maltrapilha. 

– Acordou? Me dê o pagamento pela travessia.

– Não tenho nada comigo, mas se me tirar daqui, quando chegar em casa te darei tudo o que eu tenho no banco – Não é muito, já adianto. 

– Quero apenas a sua menor moeda. Ou ela ou fica aqui e ninguém irá te encontrar. 

         Como um coelho podia navegar, controlando um barco? Atrevido animal! Alice apalpou os bolsos e acabou encontrando uma moeda, que entregou ao coelho. Entrou no barco e apertou os olhos com força. Estava com medo. Queria acordar no banco de madeira onde se deitou há tanto tempo. 

         – A viagem é longa? 

         – O que é longo? O tempo, cara Alice, passa diferente. Uma hora lavando a louça do jantar é um tempo longo. Uma hora conversando com amigos é um tempo curto. 

         – Como sabe o meu nome?

         – Eu sei os nomes de todos que são, dos que foram e dos que ainda vão ser. Faça silêncio mulher. Olhe ao redor. 

E Alice olhou. As águas do rio já não pareciam tão fétidas nem tão tranquilas – Parecia que haviam entrado em uma enorme corredeira. Havia trechos estreitos e outros mais largos e, apesar da escuridão, vez ou outra Alice parecia ver sombras disformes entre as pedras e ouvir gritos ao longe. Encolhida, sentia cada vez mais frio. Percebeu as pontas das unhas ganhando uma cor arroxeada.

         – Sr. Coelho tem um cobertor? Olhe como minhas mãos estão roxas de frio. 

         – Aqui não há conforto. A viagem é igual para todos – Não importa quanto dinheiro você tenha. 

         Alice se calou novamente. Percebeu formas nas águas e inclinando-se um pouco na borda do barco viu que eram imagens de pessoas – Os olhos abertos, opacos, olhando para o nada. O estômago embrulhou e ela vomitou uma profusão de larvas roliças – esverdeadas. Gritou fazendo com que uma profusão de morcegos se agitassem, enroscando em seus cabelos e arranhando sua pele pálida. O coelho, ao invés de ajudá-la, observava a cena, misteriosamente imune aos ataques dos morcegos. Tentou agarrar aquele animal maldito, intentando jogá-lo nas águas, mas para sua surpresa, ele parecia ter o peso e a força de um homem adulto. 

         Ela não viu a cachoeira se aproximando. Sentia o barco acelerar cada vez mais  enquanto lutava com o coelho e perdeu a consciência ao ser engolida pelas águas. 

         Percebeu sua nudez. A pele do corpo tornou-se uma coleção de hematomas azuis esverdeados, mas incrivelmente não sentia dor. Passou os dedos por entre os cabelos completamente emaranhados. Era apenas um refugo da mulher que um dia fora. Os ossos apareciam por entre as carnes magras demais. Na beira do lago que se formava com a queda d’agua, o coelho martelava as tábuas consertando o barco. Ela olhou para o céu, mas percebeu que ainda estavam no fundo da terra. Aproximou-se do coelho-barqueiro:

– O barco ainda demora a ficar pronto? 

– Levará o tempo necessário

– Tenho fome, estou nua. Há algo para comer e vestir enquanto espero para prosseguirmos a viagem?

– A nossa viagem terminou, Alice. Agora, começa a sua viagem. 

– Sozinha?

– Você sempre esteve sozinha. Siga adiante, enfrente seus medos e encontre o seu destino. 

         Com lágrimas nos olhos, Alice viu o coelho empurrar o barco para dentro do lago e sumir atrás da cortina de água. Caminhou a esmo, os pés descalços doíam quando pisava os pedregulhos espalhados pelo caminho. Encontrou uma clareira formada por sete árvores secas.  

– Mas como poderiam existir árvores em uma caverna? 

– Uuh uuh… Sempre as mesmas perguntas… 

– Quem está aí? 

  Um rufar de asas cortou os ares. Novamente o chirriar de uma coruja se fez ouvir – Uuh uuh – Aqui em cima.

Alice olhou para cima e viu: A coruja tinha o tamanho dela. Correu. tinha fobia a qualquer tipo de ave. Enfiou-se por baixo da raiz de uma das árvores e continuou seu caminho. 

– Primeiro eu segui um coelho. Acordei em uma caverna, encontrei um rio e o coelho reapareceu como barqueiro. E me abandonou sem roupa e sem destino. Acorda Alice. Isso só pode ser um pesadelo! 

          Mas Alice não acordou. Percebeu que o buraco na raiz da árvore a havia levado a outro lugar – Era quente, havia grama e céu azul. Deitada, pensava na vida – Há tanto tempo não olhava o céu com calma, sem pressa, sem pensar em afazeres infinitos. Esticou o braço e alcançou um morango que brotava ali. Era doce. Uma sibilante serpente a chamou de cima de uma macieira:

– Venha Alice. Coma o fruto do conhecimento.

– Você fala?

– É óbvio

– Isso é impossível!

– A pergunta não deveria ser “como eu entendo o que você fala?”

Alice pensou. Era verdade – Como entendia o que a serpente lhe dizia? 

– Venha, prove o fruto. 

– Onde eu estou?

– Onde você acha que está? 

– Não sei. 

 – Quem  não sabe onde está, também não sabe para onde vai. Venha comer, Alice. E siga o seu caminho. 

          E Alice comeu a maçã. E sentiu vergonha de sua nudez. Cobriu-se com folhas de uva assim como diziam que Eva havia feito. E seguiu em frente. Para sua surpresa, estava novamente na clareira. A coruja a observava e ela já não tinha medo da ave. 

– Eu tinha medo de você até pouco tempo. Mas agora, só consigo te admirar. Se você é realmente o símbolo da sabedoria, me ensine alguma coisa. 

– A vida, Alice, é como uma enorme ampulheta. Você vive na superfície da areia e vai construindo coisas. Não percebe a areia escoando lentamente até ser sugada junto com o último grão. E então, seu tempo acabou. – Disse e voou para longe. 

          Queria poder voltar e conversar mais com a serpente, mas o buraco da raiz era pequeno e ela não conseguiria passar por lá. Aproximou-se da segunda árvore e sem se dar conta, diminuiu até mergulhar entre as raízes. Estava caminhando à beira mar quando viu: Arthur e Valentina caminhavam trocando carícias. Seu noivo e sua melhor amiga. Felizes. Ela sempre teve medo de ser traída, mas nem em seus piores pesadelos imaginava que sua melhor amiga seria capaz de…  Os dois passaram por ela como se não a vissem, mas ela pode ouvir a conversa:

 – Ela me chamou para ser a madrinha, acredita? Não desconfia de nada, pobrezinha. 

 – Eu sei amor. Só preciso do tempo para celebrar o enlace e eu convencê-la a investir o que preciso para salvar a empresa que está quase falida. Depois, cada um pro seu canto e eu completamente nos teus braços.

          Alice foi atingida pelas palavras como por um soco no estômago – Então nunca foi amor. Ao continuar caminhando, sabia que havia enfrentado outro medo: O de ser traída. E não se surpreendeu ao olhar ao redor e ver a clareira. A coruja não estava lá. Sentia sede e fome novamente. As folhas de uva já haviam secado e se esfacelaram entre seus dedos. Deu a volta pela terceira árvore. Seguiu uma trilha de formigas que subiam pelo tronco e antes que desse por si, viu-se transformada em um inseto, carregando um peso muitas vezes maior do que o seu próprio peso. Caminhava pelo canto de uma parede. Reconheceu a própria casa – A mãe em prantos. A prima inconformada resmungava a injustiça da vida: “-Logo agora que ela iria se casar”. Alice queria avisá-las que estava bem, que não havia fugido. Desviou-se da fileira e foi se aproximando lentamente. Reconheceu então a voz aguda de Valentina que consolava a prima. Traidora. Deixou a folha cair e subiu pelo braço da antiga melhor amiga, mas antes que conseguisse fazer qualquer coisa, sentiu o peso de uma mão a esmagá-la. 

          A perda de consciência pareceu rápida dessa vez – poucos segundos entre o tapa que a havia acertado e o retorno até a clareira. Sentia pressa. Precisava retornar e terminar aquele projeto de casamento. O coelho disse: Enfrente seus medos e siga seu caminho. Alice havia enfrentado o medo de pássaros, o medo da traição e agora o medo de se sentir insignificante. Quais seriam os outros medos?

– Se há sete árvores, eu já visitei três e enfrentei três medos, então restam quatro árvores e quatro medos. 

– Uuh Uuh.. Alice está pegando o jeito! 

Não houve tempo para responder. Uma águia passou levando Alice pelo bico. O medo de altura. 

– Você sempre teve medo de voar Alice.

 A coruja estava por perto. 

 – Olhe pra baixo, Alice. Veja como poderia ter sido sua vida se você não tivesse tido medo de fazer aquela entrevista de emprego por medo de fracassar. 

          E ela viu. A casa dos sonhos. Uma vida tranquila ao lado de pessoas que amava. Percebeu que Arthur não estava ali – Se ela tivesse feito a entrevista, não estaria prestes a se casar. E não teria seguido o coelho até aquele buraco. Quando saísse de lá, tudo seria diferente. 

         A águia abriu o bico. Alice gritou alto quando sentiu a queda livre. Morreria. Não conheceria os outros três medos. Não voltaria a ver sua família e amigos. Sentiu o corpo bater contra o chão duro. Voltou ao mesmo lugar. Dessa vez, foi difícil levantar – Havia sangue pelo corpo, dificuldade para respirar. Um corvo crocitou e atirou-se sobre ela, arrancando um pedaço de carne do ombro, deixando o osso exposto. Arrastava-se em direção à quinta àrvore. A serpente surgiu e se ofereceu para ajudá-la. Ela respondeu que não seria necessário e continuou se esgueirando pelo chão. Quanto mais se esforçava, mais pele ia perdendo. Sentia um odor pútrido. Era um milagre que ainda estivesse viva. 

Novamente a serpente ofereceu ajuda. Alice não estava em condições de recusar. Aceitou a oferta. A cobra tornou-se um enorme basilisco, carregando Alice pela boca até uma cama de palha colocada aos pés da sexta árvore. Morcegos trouxeram frutinhos que ela comeu vorazmente. Seu quinto medo: Precisar de ajuda alheia para sobreviver. Dormiu.

          Quando acordou, Alice já não conseguia se movimentar. A carne que ainda restava estava inchada, inflamada. Vazava um líquido purulento por seu nariz e ouvidos. A cobra ainda estava a seu lado, assim como a coruja. Conversavam:

  – É tarde demais para ela. Demorou muito para comer o fruto da verdade. Não conseguirá enfrentar seus dois últimos medos. 

– Ela tem o direito de tentar. Eu a alimentei com o fruto do Edén. Se ela tiver força, enfrentará seu destino. 

– Se ela não enfrentar, ficará presa para sempre nas águas do rio Estige.

– Eu preciso seguir em frente… Pre…ci…so… voltar para cas…casa.

         Carregada pela cobra e pela coruja, Alice foi conduzida através do buraco no tronco da sexta árvore. Era um labirinto de espelhos. Várias Alices se refletiam: Bebê, jovem, criança, idosa. O medo de envelhecer. Precisava sair daquele labirinto, mas mal conseguia andar. Foi um choque encarar a realidade ao olhar-se em um dos espelhos e ver seu corpo: Pedaços faltando, a cabeça calva e ferida. Larvas grudadas em seu nariz e boca. As unhas das mãos haviam caído deixando os ossos das falanges à mostra. 

          Respirou fundo. Seu medo de perder a jovialidade e a beleza a encarava através do espelho. Com esforço sobre-humano, arrastou-se para fora do corredor de espelhos. Restava encontrar seu último medo. E ela não  fazia ideia do que viria. 

          O percurso entre a sexta e a sétima árvore parecia infinito. A voz do coelho grita nos ouvidos de Alice: Você sempre esteve sozinha. A verdade naquelas palavras destroçou sua alma. Sozinha. Adentrou a sétima porta e se deparou com Cérbero, o enorme cão de três cabeças que guarda os portões do Reino de Hades. Entendeu seu último medo: A morte.  

         Alice abaixou a cabeça – Como não havia entendido que o coelho era Caronte? Continuou caminhando. Havia encontrado seu irrevogável destino.

         Arthur foi algemado – A acusação? Matar a noiva. Tudo foi muito rápido: A descoberta da traição, a briga, a ameaça de não se casar. Ela foi ao salão decidida a ter seu dia de beleza. Ele pulou o muro e sabotou os freios do carro dela. Viu quando ela saiu transtornada do salão e se sentou no banco de madeira, quando caminhou de volta para casa, pegou o automóvel e acelerou em direção à estrada. A seguiu no próprio carro e viu quando perdeu o controle e caiu pela ribanceira, explodindo. Telefonou para o socorro. Era a vítima do destino, o noivo preocupado. Verdadeira tragédia noticiada na cidade pequena. O corpo carbonizado em poucos minutos. Lágrimas e comoção. O casamento seria em algumas horas, a decoração transformada em velório. Ele não contava com as câmeras. Foi preso. Recebeu uma recepção calorosa na prisão: Matadores de mulheres não eram bem vindos ali. Estava caído no canto da cela, os olhos roxos, boca sangrando. Viu um coelho preto… Animais não são permitidos nas celas. Fraco, levantou e seguiu o coelho até um buraco lá no canto. Os colegas de cela ignoravam seus movimentos. Sentiu o chão afundar quando entrou naquele buraco. Tudo rodava e rodava. 

         Arthur acordou em uma caverna. O chão de terra batida. Impossível voltar pelo túnel, que parecia tão distante. Escoriado, levantou e seguiu em direção ao pouco de luz proporcionado pelas velas posicionadas no canto oposto…

O pacto final

O ano é 2050.
Um homem ruivo com a pele cheia de sardas abre os olhos. O céu está escuro. Ele pergunta as horas para o dispositivo eletrônico que coordena e executa diversas funções na casa. Levanta e veste um macacão que protege contra a radiação e as altas temperaturas e um capacete que mais parece um aquário virado ao contrário. Acopla o capacete a um pequeno filtro cilíndrico que coloca nas costas.
Sente saudades da infância – A época em que o mundo começou a mudar, com a pandemia da covid-19 varrendo do mundo quase um terço da população humana. Ir até a escola de máscara era cansativo e não impediu um genocídio quando novas variantes se espalharam. Por isso já não haviam escolas e a maioria dos trabalhos tornou-se remota. Ele não conhece a vida adulta no mesmo mundo que os pais e avós, mas sabe foram essas gerações que destruíram aquele planeta tão bonito que hoje existe apenas nos livros.
Sobraram poucos humanos e vigora um pacto de não-reprodução. A espécie não tem mais nada para acrescentar ao mundo.
Ele olha uma última vez para o céu vermelho e segue para o lado externo da casa. No quintal está construindo uma pequena fortificação com informações que considera importantes – Se algum dia o planeta se recuperar e outro animal evoluir a ponto de entender, talvez evite cometer os mesmos erros do quase extinto ser humano.

Este post faz parte do BEDA (Blog Every Day August). Acompanhe também os posts de: Lunna, Claudia, Adriana, Obdulio, Mariana e Roseli.

Convite

Boa noite meus caros e minhas caras! Hoje, exatamente daqui duas horas, acontecerá o lançamento virtual da antologia “Amores Virtuais, Perigo Real” no Instagram da Editora Quimera. Essa antologia é muito especial – E não apenas pelo fato de um conto meu ter sido selecionado para a publicação, mas pelo tema importantíssimo e super atual: Os perigos das relações iniciadas pela internet. Outro fato importantíssimo: A renda obtida pelas vendas do livro será doada a uma instituição que acolhe mulheres vítimas de violência. Bacana né?

O tema é pesado, mas foi tratado com muita sensibilidade pelas autoras e autores selecionados, e, por falar em autores selecionados, lá no Instagram da editora tem as lives que foram feitas diariamente com cada um de nós.

Tá esperando o que para conferir?

Acesse no Instagram @grupoeditorialquimera e não perca o lançamento hoje, às 21h

Um conto de Natal diferente

“Há 2014 anos vagavam em busca de abrigo uma mulher grávida prestes a parir e um pobre marceneiro. Tendo-lhes sido negado abrigo por diversas partes, abrigaram-se em um estábulo, em meio aos animais. Ali mesmo a moça, Maria, deu à luz seu filho. Era a criança que pagaria os pecados do mundo e por isso uma estrela guiou três reis magos até o local de seu nascimento. Ao chegarem lá, carregando seus presentes ao menino Jesus, surpreenderam-se ao verificar a enorme quantidade de fumaça desprendida por uma fogueira. Ao se aproximarem, verificaram que alguns dos animais do pequeno estábulo estavam mortos, alguns já estavam sendo assados em uma fogueira, outros jaziam a um canto, destrinchados. Um pequeno cordeiro balia tristemente – havia escapado à chacina, pois ainda não tinha carne suficiente. Maria, apesar de ter dado à luz há poucas horas, ignorava o balido aflito do pobre cordeiro e concentrava-se em comer um grande pedaço de carne ainda mal passada. José cuidava dos pedaços que estavam na fogueira para que não se queimassem. Ofereceram aos reis magos pedaços generosos de carne e assim banquetearam-se por toda aquela noite (que deveria ser) feliz”.

Achou algo estranho na história? Pois é… Até onde nos consta, Maria e José não promoveram uma chacina entre os animais do estábulo onde conseguiram abrigo, não é mesmo? Então, porque insistimos, ano após ano, em comemorar o Natal com a morte de animais inocentes? Já parou para pensar na grande contradição que é comemorarmos um nascimento através da morte? Quantos seres perdem a vida para a mera satisfação de um capricho de uma sociedade egoísta e hipócrita? Aproveite sim o final de ano, o espírito natalino. Reúna familiares ao redor de uma mesa farta. Troque presentes, e acima de tudo, troque carinhos, abraços e sorrisos e, lembre-se: neste Natal, não coma o presépio! Há varias e deliciosas opções veganas e vegetarianas para deleitar seus olhos e seu paladar.

Seguem alguns links de receitas natalinas sem carne:

http://www.cantinhovegetariano.com.br/2011/12/receitas-para-o-natal-e-ano-novo.html

http://www.veggietal.com.br/cardapio-vegano-festas/

http://www.menuvegano.com.br/article/show/739/ceia-de-natal-vegana-natal-vegano