A dança sombria

No carnaval Heitor se sentia vivo. Ele sempre gostou de dançar. Quando menino vestia sua roupa mais colorida e passava horas imitando coreografias da moda ou rodopiando – Seu mundo era música e a sensação dos pés descalços tocando o chão. Infelizmente o tempo o obrigou a guardar seus sonhos dentro de uma caixa enterrada no fundo da alma – Faculdade, trabalho e rotina o fizeram entender que ele não faria parte daqueles poucos bem-aventurados que fazem da paixão sua profissão. Como havia sobrevivido sem carnaval durante os tristes anos da pandemia de COVID-19  era um mistério que agora pouco importava: O carnaval finalmente havia voltado.

               Aconteceu durante o Bloco das Ba-Bahianas sem Taboleiro, tradicionalíssimo em São Vicente. Heitor dançava, deixando a música libertá-lo de suas amarras: Vergonha, insegurança e timidez iam sendo pisadas pelos pés ágeis e velozes. No mar de foliões, um olhar chamou a atenção: Aquele rapaz negro retinto de olhos côr de âmbar, vestido com um short de linho e um colar de sementes vermelhas não parava de encará-lo. Um flerte logo correspondido pelo seu corpo. 

– Quem é você? 

– Sou um gênio. Posso realizar teu desejo mais profundo. 

  Meio bêbado, Heitor apenas sussurrou: Tudo o que eu quero é dançar para sempre. Até morrer. E beijou o belo desconhecido. Os lábios quentes tinham sabor de tâmaras frescas e mel.

          Heitor repentinamente se viu num palco – A folia havia sumido. O samba, o trio elétrico e aquele homem lindo haviam desaparecido. Ele dançava abraçado a uma bailarina enquanto uma música tocava e a cortina abria e fechava, Não parava nunca. Ele não via a plateia, apenas um vidro e dois olhos que espiavam de tempos em tempos. Ele não conseguia parar de dançar nem soltar a bailarina que lhe parecia um manequim: Muda e gelada. Ouvia conversas de pessoas incomodadas com o som contínuo, e tudo ao redor parecia enorme. Ele dançou por dias, semanas e meses, sem jamais descansar. Começou a sentir dores, mas não podia parar de dançar. O cenário ao redor do palco mudava frequentemente: Primeiro parecia estar num enorme quarto de criança, depois numa sala, num velho galpão e por último, sentiu a terra tremer sob seus pés quando o palco inteiro caiu em um lugar ermo, que parecia um beco. O vidro rachou, mas ele não conseguia soltar a bailarina e fugir. 

  As pessoas que passavam pelo beco ouviam a música e se perguntavam de onde ela vinha, mas não sabiam da triste história de Heitor. Alguns ouviam gritos e gemidos vindos da caixa, mas achavam que eram apenas ilusões sonoras.

  Anos se passaram e Heitor se transformou em uma criatura assustadora, sem vida e sem alma, mas ainda dançando dentro da caixa de música. Sua pele estava enrugada e seca, seus olhos estavam vidrados e sem expressão. As pessoas que o viam dançando ficavam paralisadas de medo e corriam dali o mais rápido possível. 

  Certa noite um homem que vivia em situação de rua assentou-se naquele beco. Entre seus delírios via um monstruoso homem dançando na caixinha de música que jazia em uma pilha de entulhos. Irritado pelo som contínuo, ele arremessou a caixinha com força para o meio da rua. Envelhecida pelo tempo, a madeira se partiu. João então retomou seu tamanho normal, o corpo minúsculo da bailarina em sua mão. Ele olhou os destroços ao seu lado e finalmente entendeu: Estivera preso numa caixinha de música. Dançou até o último de seus dias, como havia pedido. Tarde demais percebeu que desejos podem ser perigosos e gênios nem sempre são amáveis. Rodopiou uma última vez, involuntariamente, seu corpo exigia movimento contínuo. Carros passaram raspando por sua figura esquálida. Um policial tentou pará-lo, mas ele não conseguia deixar de dançar. Nas calçadas quem passava o via com pena ou desprezo: Mais um perdido na vida, delirante, sem eira nem beira. Aqueles  olhares machucavam Heitor como facas. Sentia sede, fome e dores. Dançando chegou na avenida principal da cidade. Foi atingido por um caminhão que passava correndo pela contra mão. Morreu ao som distante de uma música que tocava em algum lugar.

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As bodas de Alice (Dark Fantasy inspirada em Alice no País das Maravilhas)

As vozes femininas ao redor começaram a deixar Alice zonza. Sentia os olhos arderem devido ao cheiro dos cosméticos aplicados no cabelo e segurava a vontade de xingar a cabeleireira pelos puxões da escova. O corpo estava dolorido pela depilação feita minutos antes. E ainda faltavam a maquiagem e o vestido – Bendito vestido branco, rendado, pesado. E se alguma das daminhas tropeçasse no véu? E se o cachorro saísse correndo com a cestinha onde estavam as alianças? Se soubesse que o casamento seria sinônimo de tanta dor de cabeça e cansaço, teria fugido com o noivo para um lugar no meio do nada e nunca mais voltaria. Neste ponto dos pensamentos, as lágrimas começaram a cair sem controle – em parte pela ardência, em parte pela ansiedade. Foi preciso interromper o serviço para que ela caminhasse ao ar livre até as lágrimas cessarem.

         Sentou-se em um banco de tábuas entre duas árvores e lembrou a infância. Brincara tantas vezes junto à irmã em quintais verdes, espaçosos. Um coelho cinza  com olhos vermelhos surgiu junto a seus pés. O animal tinha ares de pressa, mordiscava a barra da saia de Alice e corria um pouco, voltando em seguida. Alice levantou e seguiu o orelhudo amigo.Vivian não havia contado sobre aquele novo integrante da família! O coelho ia se afastando da casa em direção a um buraco no canto do muro. O quintal parecia ter crescido repentinamente. Alice seguiu o coelho até a entrada da toca e sentiu o chão desaparecer sob seus pés – Estava sendo sugada para dentro da terra. 

Acordou em um chão de terra batida dentro do que parecia ser uma caverna. Não havia como subir de volta pelo túnel que parecia estar longe, muito longe. O cabelo estava todo desfeito, os braços ralados e o tornozelo inchado – Teria sorte se não tivesse fraturado nada..Havia velas no canto oposto ao local onde havia caído. Mancando, Alice se aproximou do local iluminado e percebeu que as velas na verdade formavam um caminho mais para o fundo da caverna. Impossibilitada de retornar, seguiu. Quando criança, adorava a história de sua xará que descobria um mundo fantástico após seguir um coelho branco porém ao arrepiar-se de medo, pressentia que não teria a mesma sorte da personagem. 

Conforme avançava, Alice percebia que a escuridão se aprofundava. As velas, que no início do caminho traziam a chama parada, agora iam se tornando bruxuleantes, indicando a possível presença de corrente de ar. E se há corrente de ar, há possivelmente uma saída. A esperança logo se desfez: Um rio corria nas entranhas da Terra. Atravessá-lo levaria Alice direto a um paredão. A única opção seria seguir o curso do rio por dentro d’água em direção a outra caverna que parecia ainda mais escura. O cheiro fétido e a aparência oleosa-esverdeada pareciam gritar um recado: Não toque. 

O estômago roncava. Quanto tempo havia passado desde o momento da queda? Pensou em retornar, mas percebeu que as velas estavam quase apagadas. Deu alguns passos para trás e se deitou no meio do caminho, enrolando-se em posição fetal. Estava com frio e com medo. Chorou e adormeceu esperando que alguém viesse colocar novas velas e a resgatasse. 

Acordou com um pesadelo onde Arthur a abraçava pedindo para que abrisse os olhos. O ar faltava. Sentiu um aperto no peito – O que o noivo pensaria de seu desaparecimento no dia do casamento? Olhou ao redor e percebeu que ainda estava na caverna e, para sua surpresa, as velas haviam sido trocadas e encontravam-se novamente acesas. Quem quer que houvesse feito a manutenção daquele caminho havia deliberadamente abandonado-a ali, adormecida. Caminhou de volta e percebeu que sempre retornava ao mesmo lugar: A beira do rio. A passagem por onde caíra havia se fechado. Morreria faminta e sedenta nas entranhas do mundo. Olhou novamente ao redor buscando alternativas para sobreviver mais tempo ou abreviar o sofrimento. Percebeu pela primeira vez que cogumelos vermelhos cresciam nas pedras próximas ao rio. Colheu uma porção deles – Esperava que o sabor não fosse de todo ruim. 

Acordou. Os cogumelos não eram venenosos. Percebeu um movimento diferente nas águas e se surpreendeu ao ver o coelho cinza remando um barco até a margem do rio. O animal usava uma capa maltrapilha. 

– Acordou? Me dê o pagamento pela travessia.

– Não tenho nada comigo, mas se me tirar daqui, quando chegar em casa te darei tudo o que eu tenho no banco – Não é muito, já adianto. 

– Quero apenas a sua menor moeda. Ou ela ou fica aqui e ninguém irá te encontrar. 

         Como um coelho podia navegar, controlando um barco? Atrevido animal! Alice apalpou os bolsos e acabou encontrando uma moeda, que entregou ao coelho. Entrou no barco e apertou os olhos com força. Estava com medo. Queria acordar no banco de madeira onde se deitou há tanto tempo. 

         – A viagem é longa? 

         – O que é longo? O tempo, cara Alice, passa diferente. Uma hora lavando a louça do jantar é um tempo longo. Uma hora conversando com amigos é um tempo curto. 

         – Como sabe o meu nome?

         – Eu sei os nomes de todos que são, dos que foram e dos que ainda vão ser. Faça silêncio mulher. Olhe ao redor. 

E Alice olhou. As águas do rio já não pareciam tão fétidas nem tão tranquilas – Parecia que haviam entrado em uma enorme corredeira. Havia trechos estreitos e outros mais largos e, apesar da escuridão, vez ou outra Alice parecia ver sombras disformes entre as pedras e ouvir gritos ao longe. Encolhida, sentia cada vez mais frio. Percebeu as pontas das unhas ganhando uma cor arroxeada.

         – Sr. Coelho tem um cobertor? Olhe como minhas mãos estão roxas de frio. 

         – Aqui não há conforto. A viagem é igual para todos – Não importa quanto dinheiro você tenha. 

         Alice se calou novamente. Percebeu formas nas águas e inclinando-se um pouco na borda do barco viu que eram imagens de pessoas – Os olhos abertos, opacos, olhando para o nada. O estômago embrulhou e ela vomitou uma profusão de larvas roliças – esverdeadas. Gritou fazendo com que uma profusão de morcegos se agitassem, enroscando em seus cabelos e arranhando sua pele pálida. O coelho, ao invés de ajudá-la, observava a cena, misteriosamente imune aos ataques dos morcegos. Tentou agarrar aquele animal maldito, intentando jogá-lo nas águas, mas para sua surpresa, ele parecia ter o peso e a força de um homem adulto. 

         Ela não viu a cachoeira se aproximando. Sentia o barco acelerar cada vez mais  enquanto lutava com o coelho e perdeu a consciência ao ser engolida pelas águas. 

         Percebeu sua nudez. A pele do corpo tornou-se uma coleção de hematomas azuis esverdeados, mas incrivelmente não sentia dor. Passou os dedos por entre os cabelos completamente emaranhados. Era apenas um refugo da mulher que um dia fora. Os ossos apareciam por entre as carnes magras demais. Na beira do lago que se formava com a queda d’agua, o coelho martelava as tábuas consertando o barco. Ela olhou para o céu, mas percebeu que ainda estavam no fundo da terra. Aproximou-se do coelho-barqueiro:

– O barco ainda demora a ficar pronto? 

– Levará o tempo necessário

– Tenho fome, estou nua. Há algo para comer e vestir enquanto espero para prosseguirmos a viagem?

– A nossa viagem terminou, Alice. Agora, começa a sua viagem. 

– Sozinha?

– Você sempre esteve sozinha. Siga adiante, enfrente seus medos e encontre o seu destino. 

         Com lágrimas nos olhos, Alice viu o coelho empurrar o barco para dentro do lago e sumir atrás da cortina de água. Caminhou a esmo, os pés descalços doíam quando pisava os pedregulhos espalhados pelo caminho. Encontrou uma clareira formada por sete árvores secas.  

– Mas como poderiam existir árvores em uma caverna? 

– Uuh uuh… Sempre as mesmas perguntas… 

– Quem está aí? 

  Um rufar de asas cortou os ares. Novamente o chirriar de uma coruja se fez ouvir – Uuh uuh – Aqui em cima.

Alice olhou para cima e viu: A coruja tinha o tamanho dela. Correu. tinha fobia a qualquer tipo de ave. Enfiou-se por baixo da raiz de uma das árvores e continuou seu caminho. 

– Primeiro eu segui um coelho. Acordei em uma caverna, encontrei um rio e o coelho reapareceu como barqueiro. E me abandonou sem roupa e sem destino. Acorda Alice. Isso só pode ser um pesadelo! 

          Mas Alice não acordou. Percebeu que o buraco na raiz da árvore a havia levado a outro lugar – Era quente, havia grama e céu azul. Deitada, pensava na vida – Há tanto tempo não olhava o céu com calma, sem pressa, sem pensar em afazeres infinitos. Esticou o braço e alcançou um morango que brotava ali. Era doce. Uma sibilante serpente a chamou de cima de uma macieira:

– Venha Alice. Coma o fruto do conhecimento.

– Você fala?

– É óbvio

– Isso é impossível!

– A pergunta não deveria ser “como eu entendo o que você fala?”

Alice pensou. Era verdade – Como entendia o que a serpente lhe dizia? 

– Venha, prove o fruto. 

– Onde eu estou?

– Onde você acha que está? 

– Não sei. 

 – Quem  não sabe onde está, também não sabe para onde vai. Venha comer, Alice. E siga o seu caminho. 

          E Alice comeu a maçã. E sentiu vergonha de sua nudez. Cobriu-se com folhas de uva assim como diziam que Eva havia feito. E seguiu em frente. Para sua surpresa, estava novamente na clareira. A coruja a observava e ela já não tinha medo da ave. 

– Eu tinha medo de você até pouco tempo. Mas agora, só consigo te admirar. Se você é realmente o símbolo da sabedoria, me ensine alguma coisa. 

– A vida, Alice, é como uma enorme ampulheta. Você vive na superfície da areia e vai construindo coisas. Não percebe a areia escoando lentamente até ser sugada junto com o último grão. E então, seu tempo acabou. – Disse e voou para longe. 

          Queria poder voltar e conversar mais com a serpente, mas o buraco da raiz era pequeno e ela não conseguiria passar por lá. Aproximou-se da segunda árvore e sem se dar conta, diminuiu até mergulhar entre as raízes. Estava caminhando à beira mar quando viu: Arthur e Valentina caminhavam trocando carícias. Seu noivo e sua melhor amiga. Felizes. Ela sempre teve medo de ser traída, mas nem em seus piores pesadelos imaginava que sua melhor amiga seria capaz de…  Os dois passaram por ela como se não a vissem, mas ela pode ouvir a conversa:

 – Ela me chamou para ser a madrinha, acredita? Não desconfia de nada, pobrezinha. 

 – Eu sei amor. Só preciso do tempo para celebrar o enlace e eu convencê-la a investir o que preciso para salvar a empresa que está quase falida. Depois, cada um pro seu canto e eu completamente nos teus braços.

          Alice foi atingida pelas palavras como por um soco no estômago – Então nunca foi amor. Ao continuar caminhando, sabia que havia enfrentado outro medo: O de ser traída. E não se surpreendeu ao olhar ao redor e ver a clareira. A coruja não estava lá. Sentia sede e fome novamente. As folhas de uva já haviam secado e se esfacelaram entre seus dedos. Deu a volta pela terceira árvore. Seguiu uma trilha de formigas que subiam pelo tronco e antes que desse por si, viu-se transformada em um inseto, carregando um peso muitas vezes maior do que o seu próprio peso. Caminhava pelo canto de uma parede. Reconheceu a própria casa – A mãe em prantos. A prima inconformada resmungava a injustiça da vida: “-Logo agora que ela iria se casar”. Alice queria avisá-las que estava bem, que não havia fugido. Desviou-se da fileira e foi se aproximando lentamente. Reconheceu então a voz aguda de Valentina que consolava a prima. Traidora. Deixou a folha cair e subiu pelo braço da antiga melhor amiga, mas antes que conseguisse fazer qualquer coisa, sentiu o peso de uma mão a esmagá-la. 

          A perda de consciência pareceu rápida dessa vez – poucos segundos entre o tapa que a havia acertado e o retorno até a clareira. Sentia pressa. Precisava retornar e terminar aquele projeto de casamento. O coelho disse: Enfrente seus medos e siga seu caminho. Alice havia enfrentado o medo de pássaros, o medo da traição e agora o medo de se sentir insignificante. Quais seriam os outros medos?

– Se há sete árvores, eu já visitei três e enfrentei três medos, então restam quatro árvores e quatro medos. 

– Uuh Uuh.. Alice está pegando o jeito! 

Não houve tempo para responder. Uma águia passou levando Alice pelo bico. O medo de altura. 

– Você sempre teve medo de voar Alice.

 A coruja estava por perto. 

 – Olhe pra baixo, Alice. Veja como poderia ter sido sua vida se você não tivesse tido medo de fazer aquela entrevista de emprego por medo de fracassar. 

          E ela viu. A casa dos sonhos. Uma vida tranquila ao lado de pessoas que amava. Percebeu que Arthur não estava ali – Se ela tivesse feito a entrevista, não estaria prestes a se casar. E não teria seguido o coelho até aquele buraco. Quando saísse de lá, tudo seria diferente. 

         A águia abriu o bico. Alice gritou alto quando sentiu a queda livre. Morreria. Não conheceria os outros três medos. Não voltaria a ver sua família e amigos. Sentiu o corpo bater contra o chão duro. Voltou ao mesmo lugar. Dessa vez, foi difícil levantar – Havia sangue pelo corpo, dificuldade para respirar. Um corvo crocitou e atirou-se sobre ela, arrancando um pedaço de carne do ombro, deixando o osso exposto. Arrastava-se em direção à quinta àrvore. A serpente surgiu e se ofereceu para ajudá-la. Ela respondeu que não seria necessário e continuou se esgueirando pelo chão. Quanto mais se esforçava, mais pele ia perdendo. Sentia um odor pútrido. Era um milagre que ainda estivesse viva. 

Novamente a serpente ofereceu ajuda. Alice não estava em condições de recusar. Aceitou a oferta. A cobra tornou-se um enorme basilisco, carregando Alice pela boca até uma cama de palha colocada aos pés da sexta árvore. Morcegos trouxeram frutinhos que ela comeu vorazmente. Seu quinto medo: Precisar de ajuda alheia para sobreviver. Dormiu.

          Quando acordou, Alice já não conseguia se movimentar. A carne que ainda restava estava inchada, inflamada. Vazava um líquido purulento por seu nariz e ouvidos. A cobra ainda estava a seu lado, assim como a coruja. Conversavam:

  – É tarde demais para ela. Demorou muito para comer o fruto da verdade. Não conseguirá enfrentar seus dois últimos medos. 

– Ela tem o direito de tentar. Eu a alimentei com o fruto do Edén. Se ela tiver força, enfrentará seu destino. 

– Se ela não enfrentar, ficará presa para sempre nas águas do rio Estige.

– Eu preciso seguir em frente… Pre…ci…so… voltar para cas…casa.

         Carregada pela cobra e pela coruja, Alice foi conduzida através do buraco no tronco da sexta árvore. Era um labirinto de espelhos. Várias Alices se refletiam: Bebê, jovem, criança, idosa. O medo de envelhecer. Precisava sair daquele labirinto, mas mal conseguia andar. Foi um choque encarar a realidade ao olhar-se em um dos espelhos e ver seu corpo: Pedaços faltando, a cabeça calva e ferida. Larvas grudadas em seu nariz e boca. As unhas das mãos haviam caído deixando os ossos das falanges à mostra. 

          Respirou fundo. Seu medo de perder a jovialidade e a beleza a encarava através do espelho. Com esforço sobre-humano, arrastou-se para fora do corredor de espelhos. Restava encontrar seu último medo. E ela não  fazia ideia do que viria. 

          O percurso entre a sexta e a sétima árvore parecia infinito. A voz do coelho grita nos ouvidos de Alice: Você sempre esteve sozinha. A verdade naquelas palavras destroçou sua alma. Sozinha. Adentrou a sétima porta e se deparou com Cérbero, o enorme cão de três cabeças que guarda os portões do Reino de Hades. Entendeu seu último medo: A morte.  

         Alice abaixou a cabeça – Como não havia entendido que o coelho era Caronte? Continuou caminhando. Havia encontrado seu irrevogável destino.

         Arthur foi algemado – A acusação? Matar a noiva. Tudo foi muito rápido: A descoberta da traição, a briga, a ameaça de não se casar. Ela foi ao salão decidida a ter seu dia de beleza. Ele pulou o muro e sabotou os freios do carro dela. Viu quando ela saiu transtornada do salão e se sentou no banco de madeira, quando caminhou de volta para casa, pegou o automóvel e acelerou em direção à estrada. A seguiu no próprio carro e viu quando perdeu o controle e caiu pela ribanceira, explodindo. Telefonou para o socorro. Era a vítima do destino, o noivo preocupado. Verdadeira tragédia noticiada na cidade pequena. O corpo carbonizado em poucos minutos. Lágrimas e comoção. O casamento seria em algumas horas, a decoração transformada em velório. Ele não contava com as câmeras. Foi preso. Recebeu uma recepção calorosa na prisão: Matadores de mulheres não eram bem vindos ali. Estava caído no canto da cela, os olhos roxos, boca sangrando. Viu um coelho preto… Animais não são permitidos nas celas. Fraco, levantou e seguiu o coelho até um buraco lá no canto. Os colegas de cela ignoravam seus movimentos. Sentiu o chão afundar quando entrou naquele buraco. Tudo rodava e rodava. 

         Arthur acordou em uma caverna. O chão de terra batida. Impossível voltar pelo túnel, que parecia tão distante. Escoriado, levantou e seguiu em direção ao pouco de luz proporcionado pelas velas posicionadas no canto oposto…

O pacto final

O ano é 2050.
Um homem ruivo com a pele cheia de sardas abre os olhos. O céu está escuro. Ele pergunta as horas para o dispositivo eletrônico que coordena e executa diversas funções na casa. Levanta e veste um macacão que protege contra a radiação e as altas temperaturas e um capacete que mais parece um aquário virado ao contrário. Acopla o capacete a um pequeno filtro cilíndrico que coloca nas costas.
Sente saudades da infância – A época em que o mundo começou a mudar, com a pandemia da covid-19 varrendo do mundo quase um terço da população humana. Ir até a escola de máscara era cansativo e não impediu um genocídio quando novas variantes se espalharam. Por isso já não haviam escolas e a maioria dos trabalhos tornou-se remota. Ele não conhece a vida adulta no mesmo mundo que os pais e avós, mas sabe foram essas gerações que destruíram aquele planeta tão bonito que hoje existe apenas nos livros.
Sobraram poucos humanos e vigora um pacto de não-reprodução. A espécie não tem mais nada para acrescentar ao mundo.
Ele olha uma última vez para o céu vermelho e segue para o lado externo da casa. No quintal está construindo uma pequena fortificação com informações que considera importantes – Se algum dia o planeta se recuperar e outro animal evoluir a ponto de entender, talvez evite cometer os mesmos erros do quase extinto ser humano.

Este post faz parte do BEDA (Blog Every Day August). Acompanhe também os posts de: Lunna, Claudia, Adriana, Obdulio, Mariana e Roseli.

Um encontro de sabor (e cebolas). [Conto + receita de pão de cebola vegano]

Chovia. O feriado prolongado prometera dias de descanso, praia e sol e entregara dias cinzentos e muita água. Letícia olhou para a geladeira: Precisava urgentemente ir ao supermercado, mas sentia sono e muita preguiça ao imaginar as filas. Pegou uma maçã e começou a morder, desinteressadamente, sem saber se o que sentia ao certo era fome ou tédio. Um som leve interrompeu-lhe os pensamentos. Mensagem de texto de um número desconhecido: Gostei do teu tempero. Vamos cozinhar? Estou planejando fazer pão e assistir um filme aqui em casa, topa? Não havia assinatura na mensagem, mas Letícia sabia qual o único remetente possível. Há dois anos ela havia recusado uma sopa – Dezoito anos, sozinha pela primeira vez em uma grande cidade e pensando o pior de qualquer pessoa – Ainda sentia vergonha da pouca cordialidade que tivera na época. Agora, estava disposta a conhecê-lo melhor e ter ao menos um amigo no prédio. Respondeu a mensagem e tomou uma ducha antes de subir e bater na porta do apartamento 805.

            Berilo abriu a porta com um sorriso largo e o cabelo despenteado, com as pontas um pouco queimadas de Sol. Ele parecia estar sempre chegando da praia, tinha olhos de maresia e um peitoral largo “- Entra. Cozinhar no corredor é impossível”. Letícia deu um sorriso tímido e entrou. O apartamento era completamente diferente do que ela imaginava: Uma grande estante repleta de livros, alguns enfeites, uma mesa e quadrinhos com fotos de família. Ela corou ao pensar no próprio apartamento onde dormia num colchonete jogado a um canto e revirava caixas para encontrar qualquer livro que desejasse ler. Ele entregou uma touca – Vista isso – Aqui em casa cozinha é uma coisa séria. Letícia nunca imaginou que fazer pães pudesse ser uma experiência quase libidinosa – A cozinha pequena da kitnet mantinha os corpos juntos e, em alguns momentos ela encostava-se nele de maneira provocativa. Fizeram pães de cebola e ervas e a inevitável piada surgiu: Com tantas lágrimas, seriam eles dois ciumentos incorrigíveis? Como provocação ela respondeu que não era ciumenta, mas que tanta cebola certamente seria para deixar explícita a intenção de não beijar.  Quando colocaram os pães no forno, ele tirou a camisa – Estava calor apesar da chuva, e o forno ligado só contribuía para deixar o ambiente ainda mais quente. Alegando calor, ela ergueu a camiseta acima do umbigo e amarrou com um nó. Olharam-se com tensão. Berilo arrumou a mesa: Caponata de berinjela, hommus de grão de bico, patê de tofu e um litro de suco de laranja – Exceto o suco, tudo caseiro e vegano. Vamos ver como estão estes pães? Berilo surgia na sala com os pães. Letícia nunca havia imaginado que comida vegana poderia ser tão boa, então, lembrou-se do dia em que trocaram porções de caril e perguntou se ele acaso era vegano. Ele riu e respondeu que sim. “-Então, o que fez com o Caril que deixei na tua porta aquele dia?”. Berilo corou ao confessar que havia levado para o José da portaria. Letícia fingiu estar seriamente ofendida, mas não conseguiu segurar o riso por muito tempo, principalmente quando ele pediu licença e retornou com um vidro de enxaguante bucal “para quebrar os efeitos da cebola”. Não precisaram do enxaguante nem de outras palavras: Seus lábios e corpos se colaram. Letícia retirou a camiseta, deixando os seios à mostra. Berilo a puxou para mais perto, deixando-a sentir o volume por baixo da bermuda e sentando-se no sofá com ela no colo. Ofegavam em uma mistura de corpos e línguas e peles arrepiadas. Mãos se misturavam com coxas e ventre. Eles não ouviram quando alguém colocou a chave na fechadura e abriu a porta “- Desculpa interromper.”. Um rapaz branquelo e sardento olhava atônito para o casal. Era Caio, o ex-namorado de Berilo que, lembrando-se que não havia devolvido a chave e não tendo sido barrado na portaria, subira direto e acabara interrompendo o encontro – O que aconteceu entre eles depois que Letícia foi embora é assunto para outra receita – por agora, basta dizer que ela voltou para casa com mais calor do que estava e sentindo uma fome diferente, insaciável: Fome do cheiro e do corpo do vizinho do 805.

Receita do Pão de Cebola e Ervas

1 xícara de óleo de girassol

2 colheres rasas de açúcar

1 xícara de água quente

3 colheres de chia deixada de molho em ¼ de xícara de água

2 dentes de alho

Ervas: ½ maço de cheiro verde, 2 colheres de orégano, 2 colheres de erva doce, ½ maço de manjericão ou manjerona

1 colher (sopa) de sal

4 cebolas média

2 colheres (sopa) de fermento biológico

2 kg de farinha de trigo

No liquidificador bater as cebolas e a água quente. Colocar a chia hidratada com a água e bater mais. Em seguida, óleo, sal, açúcar, ervas e alho. Continuar batendo e acrescentar o fermento por último, com a mistura já fria. Ir acrescentando a farinha aos poucos, sovando até a massa não grudar nas mãos e ficar homogênea. Deixar crescer até dobrar de volume e fazer os pães, formando bolas que devem ser colocadas em assadeira untada e descansar até que colocando o dedo, a massa permaneça afundada. Assar em forno baixo, pré-aquecido, aumentando quando começar a dourar.

Essa história é a continuação da história da Letícia. Os primeiros capítulos estão aqui: 1 Cebolas e Ciúmes; 2 Letícia, o vizinho e o limoeiro – Ou como tudo começou, na versão dela.; 3 Letícia, a nova vizinha – Ou o prato de sopa onde Berilo acredita que tudo deveria ter começado.

Fotos dos pratos? Dá uma olhadinha lá no Instagram @poetisa_darlene

Convite

Boa noite meus caros e minhas caras! Hoje, exatamente daqui duas horas, acontecerá o lançamento virtual da antologia “Amores Virtuais, Perigo Real” no Instagram da Editora Quimera. Essa antologia é muito especial – E não apenas pelo fato de um conto meu ter sido selecionado para a publicação, mas pelo tema importantíssimo e super atual: Os perigos das relações iniciadas pela internet. Outro fato importantíssimo: A renda obtida pelas vendas do livro será doada a uma instituição que acolhe mulheres vítimas de violência. Bacana né?

O tema é pesado, mas foi tratado com muita sensibilidade pelas autoras e autores selecionados, e, por falar em autores selecionados, lá no Instagram da editora tem as lives que foram feitas diariamente com cada um de nós.

Tá esperando o que para conferir?

Acesse no Instagram @grupoeditorialquimera e não perca o lançamento hoje, às 21h

O misterioso Sr. Noah (Conto BDSM, +18)

O conto a seguir foi escrito para um concurso literário com temática erótica/BDSM. Infelizmente, perdi o prazo de envio e, para que ele não fique parado em uma gaveta, estou publicando aqui. Se você tem menos de dezoito anos de idade ou não gosta deste tipo de leitura, peço que não continue a ler este post e procure outro – afinal, aqui tem conteúdo para todos os gostos. Se aprecia literatura erótica e é maior de idade, continue lendo e deixe um comentário.

Camila estava sentada sobre os calcanhares – Havia perdido a noção do tempo, mas os músculos de suas pernas já começavam a causar desconforto. As palmas das mãos viradas para cima, postura ereta, olhos baixos. Seguira todas as instruções enviadas por ele na mensagem de texto: O quarto escuro, exceto por uma vela lilás colocada em um suporte alguns metros atrás dela, o corpo nu, adornado apenas por uma coleira, a cama arrumada e, sobre a cômoda, os objetos que havia recebido pelo correio naquela manhã: Cordas de juta, um chicote de hipismo, um flogger, uma chibata, alguns braceletes com pesadas argolas de metal, uma mordaça, pequenos grampos e um dildo. Tudo organizado exatamente como na foto que acompanhara a caixa. A ansiedade a fazia ficar excitada – Em silêncio absoluto, ela tentava identificar passos pelo corredor ou o som da chave na fechadura – Era torturante estar de costas para a porta. Tudo havia começado com uma sacola plástica que rompeu na porta do elevador espalhando latas e outras embalagens pelo hall do prédio. Ela estava com pressa, mas ajudou o novo vizinho a recolher suas compras do chão. No dia seguinte, encontrou um cartão agradecendo pela gentileza. Depois disso, esbarravam-se diariamente todas as noites: Cultivavam o mesmo hábito de correr e fazer exercícios na praia. Não falavam, mas trocavam alguns olhares – O corpo dela respondia intensamente quando reparava na bunda dele espremida na sunga ou quando, ao sair ou retornar, sentia o cheiro dele naquele pequeno elevador – Inúmeras vezes fora dormir pensando nele, desenhando com as próprias mãos os caminhos que gostaria de senti-lo percorrer com dedos, lábios e falo, e só dormia depois de chegar ao orgasmo. Precisava tirá-lo da cabeça – Baixou um aplicativo para conhecer homens e, para sua surpresa, a primeira solicitação foi justamente a dele: Senhor Noah. Ela tinha certeza de ter ouvido o porteiro chamá-lo Francisco, ou estaria maluca? Aceitou a solicitação e começaram uma conversa que se arrastou pela noite. Falaram o suficiente, nem muito, nem pouco, apenas o suficiente para estabelecerem algumas regras – estranhas para ela em um primeiro momento – sobre como seria uma relação entre eles. Ela estava presa por um estranho e arrebatador desejo, pesquisou tudo o que pode sobre as palavras que ele sugeriu e, após um choque inicial, gostou do que leu e viu. Então, chegou a mensagem de texto e a caixa. Naquele dia ela deu uma cópia da chave do apartamento para ele. “- Pensativa, cadela?” – A voz firme ocupou o quarto de Camila, que não havia ouvido nenhum ruído que indicasse a chegada dele. “-Sim”, ela respondeu. Um tapa lhe acertou o rosto “- Sim, o que?”. “- Sim Senhor”. Ele a tratava como uma cadela, mandou que ficasse de quatro e caminhasse pelo apartamento, que beijasse seus pés e retirasse seus sapatos. E ela se sentia molhada, excitada. Tentou falar, mas ele lhe deu outro tapa, desta vez na bunda “Cadelas não falam”. Amordaçou-a e colocou em seus braços e tornozelos as algemas e tornozeleiras de couro, unindo-as com uma corrente, mas deixando espaço para que ela pudesse caminhar de quatro. Ela estava exatamente do jeito que ele desejava: Entregue, sem possibilidade de fugir ou gritar. “Lembra dos gestos de segurança, cadela?”. Ela levantou a pata direita, sinalizando que lembrava, fazendo-o sorrir por perceber que ela havia lido até o final as instruções. Então, ele se desnudou, caminhou em direção a ela, passando propositalmente o pênis ereto de encontro bem perto do rosto dela. Sentou-se na beirada da cama e sinalizou para que se aproximasse e o tocasse com o rosto – Ele estava extasiado ao perceber que em nenhum momento ela se afastava ou demorava a cumprir uma ordem, apesar de ser a primeira sessão deles e, em especial, a primeira experiência dela no mundo da submissão. Sem avisar, ele levantou e colocou o dedo dentro da gruta dela, úmida e inchada. Pegou o dildo e introduziu nela, fazendo-a gemer. “Agora, cadela, eu vou retirar a sua mordaça e a corrente que está prendendo seus tornozelos e seus pulsos, e você ficará de pé, com as pernas ligeiramente abertas e os braços apoiados na parede. Quero essa bunda bem empinada e quero que você lata a cada golpe que sentir”. Camila sentia o dildo entre as pernas, desejava poder tocar o próprio clitóris, sua respiração ofegava. Em seus quase quarenta anos de vida, jamais havia pensado que um dia iria se submeter, física ou moralmente, a um homem – E, de repente, lá estava ela, latindo feito uma cadelinha e quase gozando a cada golpe. Sentia sua pele arder, mas não queria dizer a palavra de segurança – Desejava explorar os limites do corpo que, por tanto tempo, só conhecera o prazer de suas próprias mãos. Então, repentinamente ele parou e ordenou-lhe que deitasse no chão, de barriga para cima. Retirou o dildo de dentro dela, trocando-o por um pequeno e potente vibrador. Se ela queria explorar o próprio corpo, ele desejava saber até onde ela seria capaz de ir – Prendeu os grampos em seus mamilos, ouvindo-a dar um gritinho de dor. Vendou-a para que não conseguisse enxergar e ordenou que se tocasse, mas não gozasse. Ele a via contorcer-se e diminuir o ritmo. Seu falo desejava introduzir-se naquela gruta úmida e, ela não sabe, mas, por um momento, ele quase cedeu ao impulso de possuí-la. Começou a se masturbar, e ordenou que ela gozasse para ele ver. Ela se entregou completamente ao êxtase e ele, enquanto ela ainda arfava, atingiu o ápice, derramando seu leite pelo corpo dela. Então, ele ordenou que ela se sentasse exatamente da maneira em que o havia recebido no inicio da noite, afagou os cabelos dela e ordenou que tomasse um banho. Foi até a cozinha e preparou uma pequena porção de legumes e macarrão, colocou em uma vasilha de cachorro e ordenou que ela se alimentasse. Depois, observou-a organizar dentro da caixa todas as coisas que havia enviado, deixou-a novamente sentada sobre os joelhos, desta vez com o despertador programado para que ela se levantasse dentro de quinze minutos. Observou-a por mais um tempo – Uma mulher deliciosa, sem dúvidas. Saiu, fechando a porta e empurrando a chave reserva por baixo da porta. Nos dias seguintes, Camila não o viu. Aguardou uma mensagem de texto ou notícia, em vão. O perfil na rede social de paqueras havia sido desativado. Recebeu uma carta “Cadela, eu ordeno que escreva cada uma das fantasias que imagina realizar. Você deve criar um pequeno blog e postar no mínimo três vezes por semana, quero revirar cada um dos seus pensamentos devassos. Você está proibida de se masturbar ou de manter qualquer contato sexual com outros homens ou mulheres. Comece relatando aquela nossa primeira noite e depois solte a imaginação. Não se esqueça de manter o anonimato: Ao criar o blog, utilize a assinatura “Cadela do Sr. Noah”. Até um dia”. Camila sabia que entre as regras estabelecidas naquelas longas conversas, estava a de jamais perguntar aonde ele iria ou quando iriam se encontrar. Foi até o computador e criou o blog. Dois meses após a primeira noite, ela recebeu outra caixa, desta vez com um par de orelhas e um plug anal que lhe proporcionaria um belo rabo. Uma mensagem de texto dizia: Prepare o apartamento exatamente igual a primeira vez. Tenho lido seus textos e acredito que merece uma nova sessão e, dependendo do seu comportamento, talvez ganhe um nome desta vez. Por hora, fique com um afago do Sr. Noah.

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Letícia, o vizinho e o limoeiro – Ou como tudo começou, na versão dela.

(Algumas pessoas me chamaram no direct para dizer que curtiram a história da Letícia e de seus dois amores, então decidi continuar o conto – Se você ainda não leu o início, é só clicar aqui)

Letícia desceu até a garagem carregando um banquinho. Dirigiu-se até o muro que fazia divisa entre o prédio e o terreno que pertencia a uma velha senhora ranzinza. Posicionou o banquinho rente ao muro, testou algumas vezes buscando certificar-se de que estava firme e não iria tombar. Odiava ser baixinha! Fosse um pouco mais alta, conseguiria alcançar o galho do limoeiro esticando o braço. Subiu e cortou duas folhinhas daquela preciosidade, guardando-as junto com a tesoura no bolso da calça. Repentinamente, um animal se mexeu entre os galhos, ela se assustou e sentiu o corpo ser arremessado para trás. Quis o acaso que um par de mãos a segurasse pela cintura naquele momento, guiando-a para o chão. Era o vizinho do andar de cima. Ela sorriu sem graça, agradecendo pela ajuda. Não conseguia encará-lo depois de quase cair literalmente em cima dele. O gato que a havia assustado postara-se no muro, com os pelos arrepiados e olhar ferino, era um animal magnífico. Ela buscava na memória o nome do vizinho enquanto ficava ali, parada, observando-o esticar o braço e retirar duas folhas de limão. “- Vamos subir?” – Ele falou retirando-a da letargia em que se encontrava. Letícia pegou o banquinho e caminhou lado a lado com o homem. “- Algumas vezes eu venho até aqui para buscar essas folhas de limão, elas são um ingrediente importante para um prato que aprendi a cozinhar ainda garota: O caril tailandês – Embora, na verdade, eu não tenha plena certeza de que se trata de um prato tailandês.”. Ela falou buscando quebrar o silêncio. Ele abriu a porta do elevador, sinalizando para que entrasse e sorriu pontuando que a intenção dele ao pegar as folhas fora a mesma que a dela: Preparar o caril tailandês, velha receita da avó. “– Seu apartamento é o 701, certo?” perguntou, quando abriu a porta para que ela descesse no sétimo andar. Ela apenas balançou a cabeça. “- Muito bem! Boa noite e bom jantar. Quando quiser companhia para colher folhas do limoeiro, me avisa”. Parecia que o gato havia comido a língua de Letícia, que novamente acenou com a cabeça, respondendo um tímido “tudo bem”. Naquela noite, um pouco mais tarde, ouviu alguém bater na porta e, quando foi atender, encontrou uma sacola com uma quentinha e um bilhete: “Aprecie uma amostra da minha aparentemente não tão exclusiva receita de caril, atenciosamente, vizinho do 805”. Ela sorriu e, sem pensar muito, colocou um pouco do que ela havia terminado de preparar em um potinho e subiu até o andar de cima, retribuindo a gentileza. De fato, o tempero dele era excelente e o sabor surpreendente com a troca do tradicional frango por cogumelo shimejji. Seria ele vegetariano? E será que ele iria ler o número do telefone dela escrito a lápis no final do bilhete que ela havia deixado?”

Receita: Caril Tailandês

400gs de Shimejji

1 cebola picada

1 dente de alho

½ bulbo de erva doce picado

1 colher (chá) de coentro moído

½ colher (chá) de pimenta vermelha picada

1 colher (chá) de raspas de casca de limão

1 colher (chá) de páprica

½ colher (chá) de cominho moído

2 colheres (sopa) de óleo

3 colheres (sopa) de shoyo

1 xícara de leite de coco

2 folhas de limão

2 pimentões vermelhos ou amarelos fatiados

10 cebolinhas fatiadas em tirinhas

Higienize e refogue bem o shimejji com um pouco de sal e azeite. Retire da panela e reserve. Bata no liquidificador a cebola, o alho, a erva-doce, coentro, pimenta, raspas de limão, páprica e cominho. Aqueça o óleo no fundo da panela onde já havia refogado os shimejjis ou então use uma frigideira funda e larga. Junte os temperos batidos e cozinhe por dois minuto. Adicione o Shimejji e mexa delicadamente até envolver totalmente no tempero. Junte o molho de soja, o leite de coco, as folhas do limão, 2/3 de  xícara de água, os pimentões e as cebolinhas. Cozinhe por mais quinze a vinte minutos e sirva em seguida.

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Cebolas e ciúmes

“Quem chora cortando cebola é mulher ciumenta” – Letícia estava cansada de ouvir o velho dito popular em casa. As lágrimas rolavam involuntárias para fora dos olhos conforme a cebola ia sendo cortada em pequenos quadradinhos, mas desta vez não havia ninguém por perto para repetir essas velhas crendices – Letícia havia saído de casa há dois anos, criando asas e voando para longe, bem longe. Sem dramas ou decepções, apenas o curso natural da vida. Seu mundo agora era uma kitnet, um colchão, algumas roupas, cozinha pequena, ônibus lotado, oito horas de trabalho e quase cinco horas de estudo, praticamente dezesseis horas fora de casa. Letícia era tudo o que poderia ser naquele momento: Mulher, trabalhadora, estudante, jovem. A única coisa que Letícia não era é ciumenta, apesar das lágrimas dizerem o contrário. Era cuidadosa, presente, carinhosa e um tanto super-protetora, mas jamais ciumenta. E de repente, ali, enquanto preparava aquela salada morna de lentilhas para o jantar, ela sentiu como se uma lâmpada se acendesse sobre sua cabeça, igual nos desenhos animados quando a personagem tem uma ideia: Ela precisava contar alguns novos fatos para sua família que ficara lá no interior do Estado e, sem querer, a cebola resolvera seus problemas. Limpou as mãos no pano, pegou o celular e discou, agradecendo mentalmente pelo desinteresse familiar sobre tecnologia e chamadas de vídeo.  Ao terceiro toque, o telefone foi atendido e ela reconheceu de pronto a voz da mãe. Conversaram e, como quem nada quer, ela citou estar preparando aquela tradicional salada “- Ah! Menina ciumenta! Deve ter chorado horrores cortando a cebola, hein?!”, a mãe disse em tom zombeteiro. Era exatamente essa reação que Letícia esperava para contar as novidades: “- Chorei sim, mas ciumenta, ciumenta, eu não sou. O ditado, no meu caso, saiu errado! Se eu fosse ciumenta, não estaria neste exato momento preparando a mesa para o meu namorado e o namorado dele, que agora é meu namorado também, portanto, seus genros, jantarem comigo”.  E assim, Letícia, deixando uma perplexa Dona Lígia ao telefone, imaginou ter desmentido a verdade popular que ouvira desde pequenina – Mal sabia ela que a recém descoberta poliafetividade estava longe de ser um indício de ausência completa de ciúmes. Mas isso é um capítulo para outro prato.

Salada morna de lentilhas

1 folha de louro

1 xícara (chá) de lentilhas

1 colher (chá) de sal

1 cebola inteira

2 colheres (sopa) de azeite

3 cravos da índia

2 colheres (sopa) de vinagre

2 dentes de alho picados

1 xícara (chá) de cebola picada

2 colheres (sopa) de salsinha picada

2 colheres (sopa) de cebolinha picada

1 xícara (chá) de pimentão picado

            Deixe a lentilha de molho por pelo menos doze horas e escorra. Espete os cravos na cebola inteira e coloque na panela, junte as lentilhas e o louro e adicione água fria até metade da panela. Tempere com sal. Cozinhe em fogo baixo até as lentilhas ficarem macias, porém firmes. Escorra e retire o louro e a cebola. Transfira as lentilhas para uma tigela. Misture os outros ingredientes e incorpore à lentilha.

O conto dos 33,33% ou o conto da confidência

Ela olhou ao redor curiosamente; estavam em um café nos fundos de uma casa – o lugar tinha ares daqueles pubs clandestinos que sempre aparecem em livros e filmes da época da Segunda Guerra Mundial. Quem passasse na rua sequer desconfiaria da existência daquele lugar acolhedor. Sentaram em uma mesa pequena junto a uma parede e a garçonete lhes serviu dois copos d’água, deixando-os à vontade. Sorriram, a conversa era agradável. Algumas vezes as mãos se tocavam brevemente por cima da mesa. Ela sabia que, quando menos esperasse, uma tensão sexual iria invadi-los, porém, enquanto isso não acontecia, ela aproveitava cada momento de contemplação daqueles olhos doces. E então ele faz a pergunta: “O que você sente por mim?”. A questão que ela evitou responder até mesmo a si mesma. A questão que deixa seu coração apertado em alguns momentos. Ela sorri, tentando ganhar tempo, enquanto sente os olhos dele a observando fixamente, sugando-a como dois portais. Ela respira fundo. É difícil falar de sentimentos – Ela não passou um ano e meio escrevendo contos em terceira pessoa como forma de proteção e distanciamento? Não buscou tantas vezes lembrar todos os momentos de amizade? Ela não tentou em vão erguer um muro? Uma fortificação que a protegesse? “- Uma mistura de amor, paixão e amizade”. Falou tentando não tremer. Era verdade afinal, ela o amava, mas também tinha paixão e amizade por ele. Respirou aliviada, dando a questão por encerrada. Ele, entretanto, tinha outros planos para a conversa “-Quanto de cada sentimento?” – Novamente ele a surpreendia, decidido talvez a desbravar os segredos que trazia na alma, talvez por ter desbravado tantos segredos ocultos em seu corpo. Ela sorriu. “- Em proporções iguais… 33,33%”. Mas qual seria afinal a diferença do amor e da paixão? Para ela, o amor é o sentimento mais puro e intenso, a vontade de estar perto, de cuidar. O amor vem da alma e prescinde das trocas físicas, do sexo – contenta-se apenas em compartilhar idéias, sonhos e momentos de inocência e sensibilidade. Já a paixão é o fogo, o desejo incontido pelo corpo, a paixão é o sentimento que a fazia permitir que ele a tocasse de forma impudica. Ele a ouvia com atenção, embora comentasse que não entendia os dois sentimentos da mesma forma. “-E não dói saber que eu não correspondo da mesma forma ao que você sente?” – Seu Dono era tão direto! Era complicado conversar – Os sentimentos dela e os da personagem se confundiam. Ela estava acostumada a não ser amada, mas sua personagem, não. E por mais que o costume ao não-amor a fizesse não sentir dor, em alguns momentos, ela se sentia sim melancólica – Muitas vezes a imagem dele invadia suas memórias em momentos aleatórios do dia e ela desejava abraçá-lo, desejava pedir que ele nunca mais soltasse suas mãos das dela. Mas ela respirava fundo e seguia em frente. E sorria – Afinal, se o que ela sentia por ele era uma mistura em iguais proporções de amor, paixão e amizade, ela era sim correspondida, ao menos na amizade e na paixão caso considerasse a sua definição pessoal desse sentimento.
Continuaram conversando até que ela, desastrada, derrubou o copo de água, molhando as roupas dele. Decidiram ir para outro lugar. Havia um brilho bem conhecido nos olhos de ambos. Ele dirigiu, pegou uma estrada escura em direção a periferia da cidade, parou em frente a uma casa com aparência de abandono. Atravessaram o jardim, iluminado somente pela lua. Ele abriu a porta que rangeu como se reclamasse do horário em que chegavam. Havia poeira pelo chão, os cômodos estavam relativamente vazios: Uma pia, um fogão. No único quarto, uma mesa de canto onde um velho telefone de disco quedava silencioso. Ele a fez se despir. Colocou-lhe a coleira e passou a corda pela argola. Caminhou pela casa com ela de quatro a seu lado – Como uma verdadeira cadelinha, cheia de desejos. Na sala, ele ordenou que ela beijasse seus pés, depois a colocou de pé, mãos apoiadas na parede, pernas ligeiramente afastadas. Ele a açoitava e a beijava, percebendo exatamente o momento perfeito para uma e outra coisa, a dor do flogger encontrando a pele de suas nádegas expostas a fazia sentir-se especial. A música escolhida pelo seu Dono combinava com a atmosfera abandonada e aterrorizante do local. O coração batia apressado. Ela precisava senti-lo ali dentro dela. Era urgente. Só a pele, o cheiro e as mãos não bastavam. Estar presa não bastava. Ela queria tornar-se uma só com ele, ao menos por alguns momentos. “- Eu quero o Senhor” – Ela não tinha coragem de expressar o que queria “- Como você me quer? Fala.”. Com o ar já faltando e os músculos se contraindo pelo desejo que se espalhava qual lava de vulcão, ela respondeu “- Eu quero que o senhor me foda gostoso, como uma cadelinha. Por favor.”. Ele esfregava o corpo dele no dela, prensando-a contra a parede. Ela o sentia duro e preparado. Ele a deitou sobre a mesa e começou a passar a língua pelos seus seios. Manteve as mãos dela presas acima da cabeça. Explorava sua escrava com as mãos e a boca e utilizava a língua para estimular ainda mais as regiões secretas de seu corpo – Ela o avisou que estava quase chegando ao ápice e ele ordenou que se controlasse. Ele a puxou bem para a ponta da mesa e se colocou dentro dela. Ela rebolava completamente entregue – E então, os corpos trêmulos ouviram um ranger e sentiram tudo se deslocar – A mesa partiu-se em dois pedaços, caindo. Vestiram-se rapidamente e saíram, não queriam que a vizinhança percebesse sua presença ali – Ele avisaria sobre o pequeno “acidente” ao dono da casa, mas não em uma noite de domingo. Ambos riram, apesar do susto e da vontade de terminar o que haviam começado. Ao deixá-la na estação, ele lhe deu um beijo nos lábios e ela tomou as mãos dele entre as suas e beijou-as devotamente. Entrou no trem com o corpo ainda pulsando e pedindo pelo seu Dono. Abriu o caderno e fez algumas anotações, releu e percebeu que não atingira com as palavras o efeito desejado – Ela sabia que aquela noite havia sido especialmente marcante – Não pelo sexo que fora finalizado de forma abrupta, mas pela conversa e pela confidência que lhe escapara dos lábios. Dias depois ela pensava nele depois de um dia longo e então abriu o caderno e começou a escrever. Era uma urgência. O cheiro do chá, o frio, a saudade e a doçura de tantos momentos bons. Ela precisava colocar tudo no papel, na foto, na tela. Escrever era dar vazão ao amor, a paixão e a amizade – E como era incrível encontrar o equilíbrio de poder sentir as três coisas ao mesmo tempo e saber que amar não significa cobrar amor e sim apenas senti-lo… A primeira linha continuava incompleta: O conto… Título era um problema para ela, talvez por ser uma espécie de rótulo, coisa que a menina não gostava – rótulos. Mas ela já estava perdendo o foco. Precisava voltar ao caderno. Deveria ter feito café, o cheiro de café sempre a levava para junto dele em pensamento. Aos poucos mais um conto ia tomando forma. Era o momento mais íntimo entre as duas mulheres que conviviam em um só corpo: O momento de escrever seus contos sobre a história especial e única que compartilhavam.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

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*Essa postagem faz parte do projeto Blog Everyday August/BEDA)

O conto da noite, do inverno e da entrega.

            As lágrimas insistiam em cair, apesar da felicidade – Sempre tivera sensibilidade ao cheiro da cebola. Na vasilha ao lado, os ovos, a ricota, o sal e a pimenta já estavam amassados, formando uma massa amarela e uniforme. Faltava a cebola e a salsinha e depois seria apenas colocar no pão, montando os sanduíches. Ela se sentia poderosa em sua cozinha – Era como se cada receita guardasse em suas entrelinhas sorrisos e momentos – E neste caso, a receita ainda era uma página quase em branco, a ser preenchida de acordo com a reação dele ao provar o sanduíche – Será que ele iria gostar? Ela estava radiante, apesar da chuva fina que escorria, do tempo frio e úmido que havia mudado os planos – De uma tarde ao ar livre para um filme no cinema que ela mais gostava. Tudo pronto deixou a cozinha e foi adentrar um território que, para ela, ainda era assustador: O espelho. Ela encarava aquele reflexo com perplexidade: Até onde ela era ela e até onde era a personagem? Ainda doía um pouco se lembrar das cenas em São Paulo – Até que ponto ela e a menina devassa compartilham sentimentos? Os olhos brilhavam – Insegurança, desejo, amor, medo, pressa. Roupa escolhida entrou no chuveiro e deixou-se ficar por longos minutos, a água quente escorrendo sobre a pele, o sabonete perfumado, o shampoo. Ela queria estar bela para o seu Senhor; observou seu corpo nu diante do espelho, a pele alva, as curvas dos seios, das coxas e do bumbum – Ele a fazia se sentir bela, e ela gostava dessa sensação. A noite estava apenas começando.

         Esperou-o na porta do cinema, com os ingressos nas mãos. Ela o viu chegar – Ele estava tão lindo. Abraçaram-se e, de braços dados, entraram. Na sala escura, as mãos dele logo trataram de desbravar partes do corpo dela que deveriam ser proibidas e, com a naturalidade de um guia que leva os turistas a um templo distante, ele habilidosamente, levou as mãos dela a tocá-lo, extraindo um prazer silencioso que se derramou por entre seus dedos. Ela sentia seu coração pulsar enquanto a respiração se dificultava e seus músculos mais secretos se abriam desejando poder arrastá-lo dali para um lugar onde ele pudesse fazê-la gritar e mergulhar no êxtase. Era a tortura mais doce. E de repente, ele apenas segurou-lhe a mão, permitindo um contato delicado e inocente, como se as sensações de minutos atrás tivessem sido parte de sua imaginação. Terminado o filme, caminharam juntos pelas calçadas. Ela estava embevecida, sentia que poderia segurar aquelas mãos para sempre, sem soltar, sem pensar e seu corpo respondia se aquecendo ainda mais, contrariando o vento frio que parecia desafiá-los a manterem o calor naquela noite de quase inverno.

         Estavam na casa dele. Deitados no sofá, falando da vida.  Ele iria se mudar para uma cidade um pouco mais distante, o que a fazia sentir saudades antecipadas. Um rock invadia a sala e todo o mundo parecia se resumir ali, nos dois, nos olhares que se procuravam, nos dedos que ela entrelaçava aos dele, nas palavras que ela tinha presas na alma e na garganta, como um laço. E então ele a vendou e a levou por um corredor. Havia vento. E havia música. Uma música gótica. Ele a ordenou que retirasse a roupa e fizesse uma reverência. Ela sentiu seus joelhos encostarem-se ao chão, ainda gelado apesar de ter sido forrado. Naquele momento, a menina-devassa tomava o controle. Ela estava lá para ser açoitada, para ser beijada, para ser devorada. E quando ele retirou a venda dos seus olhos por alguns minutos ela pode vê-la derramando sensualidade, nua, com prendedores de mamilos nos dois seios, encarando-se no espelho naquele quarto iluminado apenas pelas velas e pelo fogo que emanava de seus corpos nus. Ele deixou que ela segurasse o cabo de um flogger de tiras longas – Era pesado. A estrela da noite. Apoiou as mãos da parede, pernas entreabertas, o corpo ansioso por sentir na pele aquelas tiras. Uma, duas, três, cinco, oito vezes. Era dolorido e bom, como somente o amor e a submissão podem ser. Naquela noite ele colocaria a gag entre os lábios dela pela primeira vez – a bola preta dentro da boca, impedindo-a de gritar. Ele a tocava com desejo, depois a fustigava com o flogger, com o chicote de hipismo, com as mãos. Ela sentia prazer. Ela sentia vergonha quando ele pedia que se tocasse e, timidamente, obedecia, fazendo seus dedos adentrarem aquelas zonas tão suas, tão úmidas, tão obscuras e tão prazerosas. A voz dele era um guia natural até uma estrada de prazer.   Naquela noite, quando eles se despediram, ela sabia que já não seria suficiente escrever em seu diário em terceira pessoa para fugir de qualquer sentimento – Mergulhar nos olhos dele trazia a certeza da intensidade daqueles momentos que a deixavam assustadoramente vulnerável, era inútil tentar qualquer fuga. Era madrugada e ela precisava retornar. Ele a beijou no portão, antes ela entrasse no automóvel e se acomodasse no banco traseiro e acenasse para ele. Foi um beijo breve e intenso.  Ela não se atrevia a tentar escrever naquele momento, nem no dia seguinte pela manhã. Fez um pequeno rascunho e deixou em um canto qualquer. Aquela noite estava na memória, intensa como as outras, assustadoramente marcante. Uma sensação que não sumiria com o vento: Um dia, uma semana ou um século depois não faria diferença na memória, questão de tempo até que, como uma flor, um conto nascesse daquela lembrança. E assim, numa noite fria e repleta de saudades, quando outras histórias já haviam acontecido, ela se sentou diante da tela em branco e, com uma caneca de chá nas mãos, relembrando as sensações daquela noite, pegou o rascunho do diário e digitou – Manteve a posição de observadora ao escrever, ainda era ela contando as histórias da menina-devassa, agora com a certeza de que compartilhavam um o mesmo Senhor e o mesmo coração.