Quando gravei o vídeo propondo o #desafioliterário2020, escolhi, dentre os cinco livros sorteados a obra Clara dos Anjos como meta de leitura para Janeiro. Quem quiser ver um resumo das outras quatro obras propostas no desafio é só clicar em cima dos títulos:
Office boy em apuros, Sobre a modernidade, Memorial de Aires eUm tempo para você.
Lima Barreto escreveu sobre a vida na periferia, nos apresentando personagens que podem ser presentes em qualquer cidade – O poeta frustrado, o pai de família dedicado, a viúva recatada, os malandros, o dono de botequim, o funcionário público, entre outros. Numa época em que a virgindade feminina era um tabu e perdê-la trazia conseqüências irremediáveis, Lima Barreto nos conta a história de Cassi, um jovem cuja única ocupação é promover rinhas de galo, um tanto bronco e de caráter estragado pelos excessivos mimos e proteções de sua mãe – mulher que tem ares de arrogância e pretensões de nobreza – e de Clara dos Anjos, moça negra (o autor utiliza o “mulata”, termo esse que hoje sabemos racista e que deve ser evitado), muito jovem e filha de Joaquim dos Anjos e de Engrácia, mãe que se dedicou a protegê-la do mundo e dos riscos que as moças correm. O autor, no desenrolar da história, se dedica um bom tempo a cada uma das personagens, relatando fatos de sua vida e fazendo observações sobre como estes fatos influenciaram seu caráter e seus vícios e, no caso de Clara, fica evidenciada a crítica ao modelo de educação onde a realidade é ocultada numa tentativa falha de “proteger” as meninas. Em outros pontos, o autor critica claramente o governo, seus impostos e o não retorno deles na forma de melhorias na qualidade de vida da população – o que torna o livro bastante atual, tendo em vista que pouca coisa mudou de lá pra cá no tocante a esse “retorno”.
Como já é de se imaginar, Cassi conhece Clara dos Anjos ao ser convidado para tocar “modinhas” no aniversário da jovem – os dois pouco chegam a conversar, pois como a má fama do violeiro o precede, a família trata de manter a moça afastada, sem, no entanto, explicar os motivos de tantos cuidados. Todo esse mistério atiça a curiosidade de Clara que, tendo crescido em um ambiente isolado e com a imaginação desenvolvida pelas modinhas de amor, acredita ter encontrado em Cassi um homem para amar. Cassi, por sua vez, olha para Clara com o mesmo olhar que teve para tantas outras moças de sua condição (pobres e descendentes de negros, colocadas, portanto à margem da sociedade) – Deseja conquistá-la e se divertir, para depois abandoná-la. Para isso, planeja passo a passo uma forma de se aproximar, utilizando-se de fraquezas morais de amigos da família e da inexperiência da jovem. Quando ela se dá conta, o mal já está feito: Clara se vê grávida e desamparada, percebendo então que “nada vale neste mundo”.
Embora para alguns leitores o linguajar do autor possa parecer racista e conservador, é preciso lembrar que em 1922, ano em que foi escrito, o livro foi uma dura crítica ao modelo de sociedade e ao preconceito racial que ele mesmo sofreu– Lima Barreto, homem negro e oriundo de família pobre, soube com maestria utilizar a literatura para empreender críticas e retratar o seu povo: Não o povo carioca em amplo sentido, mas o povo dos subúrbios. Clara dos Anjos foi o último livro escrito no ano de sua morte e publicado somente em 1948. É assustador perceber que a história foi escrita há 98 anos e permanece atual! Se observarmos nosso entorno, perceberemos que apesar das grandes mudanças de comportamento ocorridas nestes quase cem anos, ainda há muitos motivos de descontentamento e revolta com questões sociais, com os políticos eleitos, com o preconceito e com os julgamentos baseados puramente na vida íntima das pessoas.
Foi uma excelente releitura e, percebo que com o passar dos anos, temos novas impressões sobre o livro, entendendo um pouco mais sobre o contexto social da época e o minucioso trabalho de criação empreendido pelo artista – Nuances que são praticamente ignoradas quando lemos em tenra idade e que são explicadas em longas aulas de literatura durante os últimos anos do Ensino Fundamental ou os primeiros anos do Ensino Médio, mas que aparentemente só são “sentidas” com uma leitura mais adulta. Na dúvida, se você ainda é jovem, leia e se puder, depois de adulto, leia novamente.
Como no meu post anterior eu coloquei um link sobre a obra e algumas pessoas comentaram e gostaram, procurarei colocar, sempre que possível, artigos acerca do livro em comento. Sobre “Clara dos Anjos” encontrei dois bem interessantes, o primeiro elaborado por Tauã Lima Verdan Rangel, Doutorando vinculado ao Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Direito da Universidade Federal Fluminense (UFF), linha de Pesquisa Conflitos Urbanos, Rurais e Socioambientais. Mestre em Ciências Jurídicas e Sociais pela Universidade Federal Fluminense. Especializando em Práticas Processuais – Processo Civil, Processo Penal e Processo do Trabalho pelo Centro Universitário São Camilo-ES. Bacharel em Direito pelo Centro Universitário São Camilo-ES. Tauã traz uma interessante análise sobre o livro, a sociedade da época e os ordenamentos jurídicos então vigentes (leia aqui). O segundo texto trata da estigmatização de Clara dos Anjos e foi publicado por Marcos Hidemi de Lima no portal Literafro – O portal da literatura Afro-Brasileira da Faculdade de Letras da Universidade Federal de Minas Gerais (leia aqui). Para quem deseja se aprofundar é muito interessante.