Uma das coisas mais bonitas que se pode dizer é que a vida é um livro em branco que ganhamos no dia em que nascemos para que dia a dia possamos escrever novos capítulos. Sinto desapontar leitoras e leitores românticos: Não é. A vida é um livro que ganhamos ao nascer, mas esse livro já traz o prólogo escrito. E ainda terá diversos capítulos escritos a nossa revelia durante anos e anos, até que possamos pegar a caneta e traçar linhas rascunhadas que sofrerão inevitáveis alterações vindas de outros “autores” que nos cercam. E sabe? Infelizmente o prólogo irá determinar muito do que vivemos. Essa semana, Miguel teve seu livro concluído com a tinta vermelho-sangue com um FIM gritante, em letras maiúsculas e sofridas. Em seu prólogo, trazia a narrativa: Negro, pobre, filho da empregada – E isso bastou para que, antes mesmo de poder tomar a caneta do destino nas mãos para tentar escrever algo, sua história fosse abreviada por ação de alguém que trazia em seus capítulos: Branca, esposa de prefeito, madame. Um livro sem final, cujo epílogo nos diz: Miguel, e tantos outros meninos, encontraram as estrelas antes de viver. Nesta mesma semana atingimos também o número de 36.475 vidas ceifadas pela COVID-19. Foram 36.475 livros cujo autor só queria escrever mais alguns capítulos: Amar, casar, ver os filhos crescerem, ver os netos nascerem, trabalhar, ouvir mais uma vez aquela música, fazer o jantar, existir. E em meio a isso, pressão para que o comércio volte ao normal, negação da ciência, um país jogado em meio à tempestade, barco desgovernado. Se a vida é um livro, neste exato momento, a vida do Brasileiro tornou-se uma distopia que caminha a passos largos em direção ao autoritarismo. Em meio a uma pandemia, trabalhadores e trabalhadoras vão às ruas ocupar seu espaço e defender o que falta da democracia, protestar contra o fascismo, pedir justiça por Miguel e pelos mais de 36 mil livros abreviados. Talvez você diga: Essas pessoas deveriam estar em isolamento. Sim, elas deveriam. Mas olhe ao redor: A população em geral não teve direito a quarentena. O ônibus lotado nas capitais mostra isso. Ou trabalham ou morrem de fome, sem uma renda emergencial digna. E se não há quarentena para se proteger, que se ocupem as ruas exigindo esse direito, ao menos, estão escrevendo um capítulo de coragem no livro da vida, e buscando influenciar os próximos prólogos, evitar alguns capítulos finais e epílogos. Foi um dia bonito, em sua tristeza e luta. Quais serão as conseqüências do capítulo escrito hoje na vida de todos e todas, não é possível saber. Que sejam boas, que culminem na queda do (des)governo que jamais deveria ter chego ao poder. E que todos e todas nós possamos sempre nos lembrar dos livros não terminados e agir para evitar que o prólogo das pessoas seja uma amarra impeditiva de um desenvolvimento pleno dos próximos capítulos. Por fim, que a distopia cesse e dê lugar a romances e aventuras.
Quantos se encerraram e quantos muitos outros estão no final.Nosso futuro está cada vez mais incerto com esse desgoverno.
CurtirCurtido por 1 pessoa
Verdade… Uma tristeza! E saber que há quem ainda apoie!
CurtirCurtir
Grande texto. Em momentos como esse ficam evidentes algumas “teses”, sobre despreparo, desorganização, falta de cultura, segurança, educação … tanto falta a tantos para que poucos possam ter tudo, e os que desviam coisas básicas dos que necessitam, manipulando e direcionando culpas e motivos, justificando atrocidades e associando a um jogo de “merecimento” que muitos acabam acreditando, assim, vítimas se vêem opressores e opressores tentam empurrar “réplicas” que na verdade são “tréplicas”, pois alguma das “ações violentas” rotuladas por tantos são apenas “consequências” de atos implícitos que geram resultados explícitos. Se TODOS tivessem realmente oportunidades iguais, aí sim poderíamos iniciar um papo sobre igualdade, merecimento e escolhas.
CurtirCurtido por 1 pessoa
Que texto poderoso e reflexivo!
Você tem razão, a vida não é um livro em branco e infelizmente como não sabemos ainda ditam as regras.
Que acontecimento lamentável foi a morte de Miguel. Ainda me choco em ver que a vida de uma criança negra custa 20 mil para responder em liberdade e já sabemos que não dará em nada, mas que se fosse ao contrário a empregada já estaria condenada só por sua cor.
E o que dizer das vidas ceifadas pelo Covid-19? Moro no bairro do Rio de Janeiro com mais casos de morte e aqui nunca pareceu ter quarentena mesmo. Vida normal com bares abertos e gente acumulada soltando pipa.
O que podemos sempre é torcer e termos esperança de que tudo um dia vai melhorar, um dia em que se prove que as vidas negras realmente importam e as pessoas parem de morrer e serem condenadas apenas por sua cor e o dia pelo qual o Covid-19 ficará apenas em uma memória triste mas que foi superada.
CurtirCurtido por 1 pessoa
Pois é, aguardamos na luta por dias melhores ♡
CurtirCurtir
Adorei a sua reflexão e concordo, mas é importante a gente entender que a gente tem um certo controle sobre os rumos da nossa história, não nos deixar se contentar com o prólogo. Beijos
CurtirCurtido por 1 pessoa
Sim, depois de uma certa idade, temos um certo controle. Precisamos entender isso e perceber até que ponto o prólogo nos afeta para direcionar da melhor maneira possível os caminhos. E, claro, lutar para que prólogos deixem de ser empecilhos para belas histórias 😉
Beijos!
CurtirCurtir
Que texto lindo e… Real. Obrigada por ele!
CurtirCurtido por 1 pessoa
Obrigada pelo comentário ♡
CurtirCurtido por 1 pessoa
Um texto forte e impactante. Infelizmente os últimos acontecimentos deixam claro que muitas vidas já nascem com o destino predeterminado. Enquanto existirem tantas diferenças sociais tragédias como a do menino Miguel irão se repetir e é muito triste chegar a essa conclusão.
CurtirCurtido por 2 pessoas
Eu tenho alguma dificuldade em lidar com essa narrativa atual. Me causa preguiça. Um menino de cinco anos deixado sozinho no elevador. Eu não imaginava que isso pudesse acontecer. Eu me lembro de minha mãe e seus conselhos ao sair de casa. A discussão na escola por me encontrar no jardim da frente, com o portão aberto. Procurar o lugar oposto as multidões. Eram tantos cuidados e um dia ela me disse: basta um instante de distração e alguma coisa acontece. Comigo nunca aconteceu… nunca me perdi dentro do supermercado ou me vi em perigo em vias de ser raptada por um estranho. Nem despenquei do nono andar de um prédio. Não se trata de cor ou condição financeira. Se trata do elemento humano. Que raio de ser humano é essa pessoa? Será que estamos mesmo perdendo tudo o que nos faz humanos?
Quando a doença… não sei mais o que dizer a respeito. Eu sabia que seria ruim por aqui e acho que ainda será muito pior e eu gostaria de estar errada. Mas já ouvi cada absurdo que fiquei com vontade de ir a janela e gritar.
bacio cara mia
CurtirCurtido por 1 pessoa
Sobre a criança, será que ela faria o mesmo com o filho de uma amiga? Há uma tendência de acreditar que o filho da empregada, de classe inferior, não tem a mesma proteção e já deve estar acostumado a ir sozinho de um lado pro outro (afinal, a realidade nos mostra crianças cuidando de outras crianças, crianças nas ruas, crianças vendendo jujubas) enquanto os filhos da classe mais alta vivem resguardados em suas casas. Não deveria ser assim e, quando pensamos nessas distinções chegamos ao mesmo questionamento que você colocou: Estamos perdendo tudo o que nos faz humanos? Algumas vezes, penso que sim. Triste demais!
Beijos ♡
CurtirCurtir