As lágrimas insistiam em cair, apesar da felicidade – Sempre tivera sensibilidade ao cheiro da cebola. Na vasilha ao lado, os ovos, a ricota, o sal e a pimenta já estavam amassados, formando uma massa amarela e uniforme. Faltava a cebola e a salsinha e depois seria apenas colocar no pão, montando os sanduíches. Ela se sentia poderosa em sua cozinha – Era como se cada receita guardasse em suas entrelinhas sorrisos e momentos – E neste caso, a receita ainda era uma página quase em branco, a ser preenchida de acordo com a reação dele ao provar o sanduíche – Será que ele iria gostar? Ela estava radiante, apesar da chuva fina que escorria, do tempo frio e úmido que havia mudado os planos – De uma tarde ao ar livre para um filme no cinema que ela mais gostava. Tudo pronto deixou a cozinha e foi adentrar um território que, para ela, ainda era assustador: O espelho. Ela encarava aquele reflexo com perplexidade: Até onde ela era ela e até onde era a personagem? Ainda doía um pouco se lembrar das cenas em São Paulo – Até que ponto ela e a menina devassa compartilham sentimentos? Os olhos brilhavam – Insegurança, desejo, amor, medo, pressa. Roupa escolhida entrou no chuveiro e deixou-se ficar por longos minutos, a água quente escorrendo sobre a pele, o sabonete perfumado, o shampoo. Ela queria estar bela para o seu Senhor; observou seu corpo nu diante do espelho, a pele alva, as curvas dos seios, das coxas e do bumbum – Ele a fazia se sentir bela, e ela gostava dessa sensação. A noite estava apenas começando.
Esperou-o na porta do cinema, com os ingressos nas mãos. Ela o viu chegar – Ele estava tão lindo. Abraçaram-se e, de braços dados, entraram. Na sala escura, as mãos dele logo trataram de desbravar partes do corpo dela que deveriam ser proibidas e, com a naturalidade de um guia que leva os turistas a um templo distante, ele habilidosamente, levou as mãos dela a tocá-lo, extraindo um prazer silencioso que se derramou por entre seus dedos. Ela sentia seu coração pulsar enquanto a respiração se dificultava e seus músculos mais secretos se abriam desejando poder arrastá-lo dali para um lugar onde ele pudesse fazê-la gritar e mergulhar no êxtase. Era a tortura mais doce. E de repente, ele apenas segurou-lhe a mão, permitindo um contato delicado e inocente, como se as sensações de minutos atrás tivessem sido parte de sua imaginação. Terminado o filme, caminharam juntos pelas calçadas. Ela estava embevecida, sentia que poderia segurar aquelas mãos para sempre, sem soltar, sem pensar e seu corpo respondia se aquecendo ainda mais, contrariando o vento frio que parecia desafiá-los a manterem o calor naquela noite de quase inverno.
Estavam na casa dele. Deitados no sofá, falando da vida. Ele iria se mudar para uma cidade um pouco mais distante, o que a fazia sentir saudades antecipadas. Um rock invadia a sala e todo o mundo parecia se resumir ali, nos dois, nos olhares que se procuravam, nos dedos que ela entrelaçava aos dele, nas palavras que ela tinha presas na alma e na garganta, como um laço. E então ele a vendou e a levou por um corredor. Havia vento. E havia música. Uma música gótica. Ele a ordenou que retirasse a roupa e fizesse uma reverência. Ela sentiu seus joelhos encostarem-se ao chão, ainda gelado apesar de ter sido forrado. Naquele momento, a menina-devassa tomava o controle. Ela estava lá para ser açoitada, para ser beijada, para ser devorada. E quando ele retirou a venda dos seus olhos por alguns minutos ela pode vê-la derramando sensualidade, nua, com prendedores de mamilos nos dois seios, encarando-se no espelho naquele quarto iluminado apenas pelas velas e pelo fogo que emanava de seus corpos nus. Ele deixou que ela segurasse o cabo de um flogger de tiras longas – Era pesado. A estrela da noite. Apoiou as mãos da parede, pernas entreabertas, o corpo ansioso por sentir na pele aquelas tiras. Uma, duas, três, cinco, oito vezes. Era dolorido e bom, como somente o amor e a submissão podem ser. Naquela noite ele colocaria a gag entre os lábios dela pela primeira vez – a bola preta dentro da boca, impedindo-a de gritar. Ele a tocava com desejo, depois a fustigava com o flogger, com o chicote de hipismo, com as mãos. Ela sentia prazer. Ela sentia vergonha quando ele pedia que se tocasse e, timidamente, obedecia, fazendo seus dedos adentrarem aquelas zonas tão suas, tão úmidas, tão obscuras e tão prazerosas. A voz dele era um guia natural até uma estrada de prazer. Naquela noite, quando eles se despediram, ela sabia que já não seria suficiente escrever em seu diário em terceira pessoa para fugir de qualquer sentimento – Mergulhar nos olhos dele trazia a certeza da intensidade daqueles momentos que a deixavam assustadoramente vulnerável, era inútil tentar qualquer fuga. Era madrugada e ela precisava retornar. Ele a beijou no portão, antes ela entrasse no automóvel e se acomodasse no banco traseiro e acenasse para ele. Foi um beijo breve e intenso. Ela não se atrevia a tentar escrever naquele momento, nem no dia seguinte pela manhã. Fez um pequeno rascunho e deixou em um canto qualquer. Aquela noite estava na memória, intensa como as outras, assustadoramente marcante. Uma sensação que não sumiria com o vento: Um dia, uma semana ou um século depois não faria diferença na memória, questão de tempo até que, como uma flor, um conto nascesse daquela lembrança. E assim, numa noite fria e repleta de saudades, quando outras histórias já haviam acontecido, ela se sentou diante da tela em branco e, com uma caneca de chá nas mãos, relembrando as sensações daquela noite, pegou o rascunho do diário e digitou – Manteve a posição de observadora ao escrever, ainda era ela contando as histórias da menina-devassa, agora com a certeza de que compartilhavam um o mesmo Senhor e o mesmo coração.